19/11/2003 -"Os atos arbitrais seguem as formas constitucionais e os árbitros sujeitam-se às penalidades cíveis e criminais".

Fonte: Jornal Valor Econômico - Seção: Legislação e Tributos

Antes do que se imaginava vem à tona discussão sobre a validade da arbitragem obrigatória, disposição esta que impõe a resolução do conflito por juízo arbitral. A questão se põe por força da Medida Provisória nº 2.221, de 4 de setembro de 2001, que institui o patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias e introduziu em nosso sistema legal a figura jurídica do juízo arbitral obrigatório. Pelo seu texto, deverão ser dirimidos por arbitragem, compulsoriamente, os litígios decorrentes de contratos de incorporação imobiliária relativos à vinculação de obrigações de que dispõem o parágrafo 2º do artigo 30-C e o artigo 30-D, que tratam, basicamente, da insolvência do incorporador e da eficácia da deliberação de continuação da obra.

Diante desse texto normativo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) interpôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 24 de setembro de 2003, por entender que a arbitragem obrigatória fere o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, que dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Em uma primeira análise do dispositivo constitucional somos inclinados a concordar com o ponto de vista da OAB. Projetada a norma em foco cerrado, literal, sua abordagem pode nos conduzir a uma concentração unilateral no Judiciário dos poderes jurisdicionais e, até mesmo, a uma exclusividade deste órgão no esforço maior e social de realização da justiça.

Contudo ao adotarmos uma interpretação mais dinâmica e abrangente da regra constitucional atrelada à sua visão histórica e ao seu alcance finalístico, chegaremos à conclusão de que tais pressupostos não são absolutos e que a inconstitucionalidade argüida não se sustenta.

De início, podemos afirmar que tal dispositivo não precisava ter sido inserido em nossa Constituição, como não consta de constituições de diversos países. Isso porque o direito de acesso à Justiça é bem jurídico inalienável, direito natural de toda pessoa e, por isso, despreza norma expressa para ter assegurado curso forçado. Tanto é que Pontes de Miranda, ao comentar tal previsão legal, afirmou ter o legislador deixado expresso aquilo que qualquer intérprete encontraria implícito em nosso sistema jurídico.

Na verdade, a positivação desse direito foi iniciativa de países que sofreram com ditaduras e golpes de Estado. Basicamente países subdesenvovidos, com grau elevado de insegurança jurídica e que enfrentaram violações das mais comezinhas a direitos fundamentais de seus jurisdicionados. E foi por essa razão que o constituinte de 1946 deixou expressa a possibilidade de acesso à Justiça a todo cidadão, em moldes similares ao atual artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.

A positivação desse direito natural pelo constituinte brasileiro teve cunho eminentemente pois no período que precedeu a Constituição de 1946, o regime ditatorial de então detinha autorização legal para criar tribunais parajudiciais com competência para julgar determinados conflitos. Tribunais esses que não necessariamente aplicavam a ampla defesa e cujas decisões, digamos, "transitavam em julgado". Vivíamos o Estado Novo.

Diante dos abusos cometidos pelas autoridades durante o referido período, vimos, pela primeira vez, introduzida em nossa Constituição a proteção do acesso à Justiça. É essa a gênesis da norma constitucional em questão.

Mas, se era desnecessária, por que sua inserção constitucional? Por certo como expressão do repúdio legislativo às arbitrariedades praticadas pelo regime que antecedia aquela constituinte e, notadamente, como clara intenção de assegurar a qualquer cidadão, em qualquer situação, uma tutela jurisdicional adequada.

É exatamente essa a teleologia do texto normativo: garantir à toda e qualquer pessoa uma efetiva tutela jurisdicional que permita uma análise e um julgamento justo de suas pretensões. Enfim, que o cidadão não seja privado do devido processo legal.

Defrontada a arbitragem obrigatória com a finalística constitucional, sentimos que ambos se tocam em fina sintonia. Isso porque o árbitro está obrigado a conduzir suas funções com diligência, independência e imparcialidade, garantindo às partes ampla defesa e contraditório. Os atos processuais arbitrais seguem as formas constitucionais e os árbitros, ademais, sujeitam-se às penalidades cíveis e criminais. Por força da Lei nº 9.307/96, aplicam-se ao processo arbitral as garantias processuais constitucionais. Por que então negar curso à arbitragem obrigatória?

Ora, se as pessoas podem encontrar nesse instituto uma porta de acesso efetivo e equilibrado à justiça, onde suas pretensões serão analisadas e julgadas com imparcialidade e a elas serão conferidas o devido processo legal e cujo eventual vício na condução do procedimento ou na decisão é passível de revisão pelo Poder Judiciário, parece-nos tabu ou mesmo certo fetichismo as críticas que sofre a arbitragem obrigatória.

Em conclusão, propomos com essas breves anotações trazer ao debate um outro prisma dessa questão, desejosos de que esta seja examinada por mentes despidas dos naturais preconceitos e misoneísmos, como ocorreu em Portugal, jurisdição em que a arbitragem necessária é uma realidade; na Itália, onde os casos de construção civil são obrigatoriamente solucionados por arbitragem; e também no Chile, país em que as controvérsias relativas a seguros, liquidação de sociedades conjugal, civil ou comercial, partilha de bens e aquelas que envolvem acionistas, dentre outras, são necessariamente resolvidas pela via arbitral.

De todo modo, o debate em torno da obrigatoriedade de adoção da via arbitral confirma o que há muito vínhamos afirmando: a lei brasileira de arbitragem pegou.

Pedro A. Batista Martins é professor convidado e coordenador de cursos de pós-graduação em mediação e arbitragem da Fundação Getúlio Vargas (GVLaw/Edesp)


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