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Fonte: Jornal Valor Econômico - Seção: Legislação e Tributos Antes do que se imaginava vem à tona discussão sobre
a validade da arbitragem obrigatória, disposição esta que impõe a
resolução do conflito por juízo arbitral. A questão se põe por força
da Medida Provisória nº 2.221, de 4 de setembro de 2001, que institui o
patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias e introduziu
em nosso sistema legal a figura jurídica do juízo arbitral obrigatório.
Pelo seu texto, deverão ser dirimidos por arbitragem, compulsoriamente,
os litígios decorrentes de contratos de incorporação imobiliária
relativos à vinculação de obrigações de que dispõem o parágrafo 2º
do artigo 30-C e o artigo 30-D, que tratam, basicamente, da insolvência
do incorporador e da eficácia da deliberação de continuação da obra. Diante desse texto normativo o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) interpôs uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (Adin), recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
em 24 de setembro de 2003, por entender que a arbitragem obrigatória fere
o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, que dispõe que a lei
não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito. Em uma primeira análise do dispositivo constitucional
somos inclinados a concordar com o ponto de vista da OAB. Projetada a
norma em foco cerrado, literal, sua abordagem pode nos conduzir a uma
concentração unilateral no Judiciário dos poderes jurisdicionais e, até
mesmo, a uma exclusividade deste órgão no esforço maior e social de
realização da justiça. Contudo ao adotarmos uma interpretação mais dinâmica
e abrangente da regra constitucional atrelada à sua visão histórica e
ao seu alcance finalístico, chegaremos à conclusão de que tais
pressupostos não são absolutos e que a inconstitucionalidade argüida não
se sustenta. De início, podemos afirmar que tal dispositivo não
precisava ter sido inserido em nossa Constituição, como não consta de
constituições de diversos países. Isso porque o direito de acesso à
Justiça é bem jurídico inalienável, direito natural de toda pessoa e,
por isso, despreza norma expressa para ter assegurado curso forçado.
Tanto é que Pontes de Miranda, ao comentar tal previsão legal, afirmou
ter o legislador deixado expresso aquilo que qualquer intérprete
encontraria implícito em nosso sistema jurídico. Na verdade, a positivação desse direito foi
iniciativa de países que sofreram com ditaduras e golpes de Estado.
Basicamente países subdesenvovidos, com grau elevado de insegurança jurídica
e que enfrentaram violações das mais comezinhas a direitos fundamentais
de seus jurisdicionados. E foi por essa razão que o constituinte de 1946
deixou expressa a possibilidade de acesso à Justiça a todo cidadão, em
moldes similares ao atual artigo 5º, inciso XXXV da Constituição
Federal. A positivação desse direito natural pelo
constituinte brasileiro teve cunho eminentemente pois no período que
precedeu a Constituição de 1946, o regime ditatorial de então detinha
autorização legal para criar tribunais parajudiciais com competência
para julgar determinados conflitos. Tribunais esses que não
necessariamente aplicavam a ampla defesa e cujas decisões, digamos,
"transitavam em julgado". Vivíamos o Estado Novo. Diante dos abusos cometidos pelas autoridades
durante o referido período, vimos, pela primeira vez, introduzida em
nossa Constituição a proteção do acesso à Justiça. É essa a gênesis
da norma constitucional em questão. Mas, se era desnecessária, por que sua inserção
constitucional? Por certo como expressão do repúdio legislativo às
arbitrariedades praticadas pelo regime que antecedia aquela constituinte
e, notadamente, como clara intenção de assegurar a qualquer cidadão, em
qualquer situação, uma tutela jurisdicional adequada. É exatamente essa a teleologia do texto normativo:
garantir à toda e qualquer pessoa uma efetiva tutela jurisdicional que
permita uma análise e um julgamento justo de suas pretensões. Enfim, que
o cidadão não seja privado do devido processo legal. Defrontada a arbitragem obrigatória com a finalística
constitucional, sentimos que ambos se tocam em fina sintonia. Isso porque
o árbitro está obrigado a conduzir suas funções com diligência,
independência e imparcialidade, garantindo às partes ampla defesa e
contraditório. Os atos processuais arbitrais seguem as formas
constitucionais e os árbitros, ademais, sujeitam-se às penalidades cíveis
e criminais. Por força da Lei nº 9.307/96, aplicam-se ao processo
arbitral as garantias processuais constitucionais. Por que então negar
curso à arbitragem obrigatória? Ora, se as pessoas podem encontrar nesse instituto uma
porta de acesso efetivo e equilibrado à justiça, onde suas pretensões
serão analisadas e julgadas com imparcialidade e a elas serão conferidas
o devido processo legal e cujo eventual vício na condução do
procedimento ou na decisão é passível de revisão pelo Poder Judiciário,
parece-nos tabu ou mesmo certo fetichismo as críticas que sofre a
arbitragem obrigatória. Em conclusão, propomos com essas breves anotações
trazer ao debate um outro prisma dessa questão, desejosos de que esta
seja examinada por mentes despidas dos naturais preconceitos e misoneísmos,
como ocorreu em Portugal, jurisdição em que a arbitragem necessária é
uma realidade; na Itália, onde os casos de construção civil são
obrigatoriamente solucionados por arbitragem; e também no Chile, país em
que as controvérsias relativas a seguros, liquidação de sociedades
conjugal, civil ou comercial, partilha de bens e aquelas que envolvem
acionistas, dentre outras, são necessariamente resolvidas pela via
arbitral. De todo modo, o debate em torno da obrigatoriedade de
adoção da via arbitral confirma o que há muito vínhamos afirmando: a
lei brasileira de arbitragem pegou. Pedro A. Batista Martins é professor convidado e coordenador de cursos de pós-graduação em mediação e arbitragem da Fundação Getúlio Vargas (GVLaw/Edesp)
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