22/8/2003 - As cláusulas arbitrais omissas e defeituosas

Fonte: Valor Econômico
Autor: Selma Ferreira Lemes

A gêneses da arbitragem está localizada na cláusula inserida em um contrato no qual as partes esclarecem que as divergências dele surgidas serão solucionadas por meio da arbitragem. É a denominada cláusula compromissória. A outra forma de instaurar a arbitragem é quando, surgida a controvérsia e inexistente a citada cláusula, as partes decidem que submeterão a pendenga a árbitros. Para tanto, subscrevem o denominado compromisso arbitral.

A arbitragem repousa na aceitação voluntária das partes em escolher essa via, que não lhes pode ser imposta. Mas a partir do momento em que decidem assim proceder, passa a ser obrigatória e as partes não podem propor demanda judicial. Isso, em decorrência do efeito vinculante da cláusula compromissória - uma das mais importantes inovações advindas com a Lei de Arbitragem, Lei nº 9307/96 -, juntamente com o preceito que determina a equivalência da sentença arbitral à sentença judicial, representa a espinha dorsal da justiça arbitral.

Todavia, nem sempre a cláusula compromissória está redigida de forma a possibilitar a instauração imediata da arbitragem. Muitos contratos estabelecem laconicamente que as dúvidas e controvérsias dele surgidas serão solucionadas por arbitragem, mas não indicam a forma de operacionalizá-la, isto é, se farão uso da arbitragem institucional, quando nomeiam uma câmara ou centro de arbitragem para administrar o processo arbitral, ou a "ad hoc", quando as partes estabelecem as regras nas quais a arbitragem será processada naquele caso específico.

Em outras situações as partes esclarecem na cláusula arbitral que a arbitragem será processada perante uma câmara de arbitragem em São Paulo, por exemplo, mas não indicam especificamente a instituição. Outro exemplo é quando, no mesmo contrato, elegem a arbitragem e a cláusula de foro judicial, ou quando indicam a instituição arbitral com denominação incompleta ou equivocada.

Estes tipos de cláusulas omissas, defeituosas, contraditórias e ambíguas são denominadas de cláusulas doentes ou patológicas, e que redundarão na instauração de um contencioso parasita, com o objetivo de esclarecer qual foi a real intenção das partes em eleger a arbitragem.

As cláusulas patológicas são pedras no caminho da arbitragem e dois serão os percursos adotados. Primeiro, quando a cláusula denotar que a arbitragem seria institucional, a parte interessada dirigirá solicitação de abertura de processo arbitral, competindo ao órgão arbitral efetuar análise prévia ("prima facie") para decidir se tem competência para administrar o processo, dando início à arbitragem, Em seguida, o tribunal arbitral verificará se tem competência para decidir a controvérsia. Caso opte pela negativa, determinará que as partes instituam a arbitragem no Judiciário. O segundo caminho, que também convergirá para o Judiciário, ocorrerá se a cláusula não der a mínima orientação de como proceder.

Esse contencioso parasita para instaurar o processo arbitral poderá adiar o início da arbitragem, no mínimo, em seis meses, além de deixar aberta a porta da via recursal, que permanecerá como uma "espada de Dâmocles" sobre a arbitragem, já que no futuro poderá vir a ser decidido que aquela cláusula não tinha validade.

Porém, tudo isso pode ser evitado se os negociadores do contrato derem a correta redação à cláusula arbitral. Neste sentido, se as partes decidirem pela arbitragem institucional, que se recomenda nesta fase inicial da arbitragem no Brasil, que elejam uma instituição idônea, com competência profissional na condução da arbitragem, que esclareçam corretamente a denominação da instituição eleita, que utilizem a cláusula-padrão ou cláusula-tipo sugerida pela instituição. No caso de contrato internacional, que a cláusula arbitral esclareça também a lei aplicável, local e idioma da arbitragem. Caso as partes optem pela arbitragem "ad hoc", que tenham o cuidado redobrado de esclarecer como elegerão os árbitros, forma de intimar a outra parte etc.

Note-se que quando as partes deixarem de especificar o procedimento a ser seguido, tal fato não impedirá o regular processamento da arbitragem, pois a lei defere aos árbitros tal tarefa, observando a igualdade de tratamento das partes e o direito de defesa.

É importante esclarecer, para evitar equívocos interpretativos, que diante de cláusula arbitral cheia - aquela que indica uma instituição arbitral ou a forma de iniciar a arbitragem e eleição de árbitros que em havendo resistência da outra parte em instituir a arbitragem - não é necessário bater nas portas do Judiciário para processar a arbitragem, basta proceder como indicado na cláusula arbitral, tal como referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a constitucionalidade das regras da Lei nº 9.307/96.

Assim, basta ter o mínimo de cuidado na redação da cláusula compromissória, para que a arbitragem seja celeremente instalada e processada. Afinal, a cautela e a diligência são atributos a serem observados em qualquer ofício ou atividade.

Selma Ferreira Lemes é coordenadora e professora do curso LLM de Direito Arbitral do IbmecLaw em São Paulo, membro da comissão relatora da Lei de Arbitragem e advogada e mestre em direito internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)

 

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