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19/8/2003 -
O uso da arbitragem na Administração Pública Solucionar controvérsias contratuais por arbitragem quando a administração pública esteja envolvida é tema que suscita muitos debates. Entre eles, o de discernir o que é direito patrimonial disponível (âmbito de abrangência da arbitragem) nas questões estatais e o possível conflito entre dois dispositivos da Lei de Licitações: um que elege o foro judicial e o outro que determina a aplicação dos princípios dos contratos empresariais. Um bom guia é partir da premissa de que quando a
administração pública atua no interesse da coletividade, adotando políticas
referentes à segurança e ao bem-estar da sociedade, são interesses fora do
mercado (indisponibilidade absoluta); são os interesses públicos primários. Já
quando adota condutas para operacionalizar os interesses públicos primários
que possam ser quantificados e tenham expressão patrimonial, estamos diante dos
interesses públicos derivados; portanto, disponíveis e suscetíveis à
arbitragem. Não se trata de examinar nem decidir sobre a
legitimidade dos atos administrativos (interesse primário), mas de suas conseqüências
patrimoniais (interesse derivado) externadas nos contratos administrativos. Quanto ao conflito gerado entre os dois dispositivos da
Lei de Licitações, há opiniões que defendem a necessidade de lei expressa
neste sentido e as que propendem a aplicar supletivamente a legislação civil
que autoriza a arbitragem, posto que, para negar autoridade à administração,
deveria existir dispositivo expresso, tal como efetuado pelo Decreto-lei nº
960/38, que vetou o uso da arbitragem no caso de dívidas fiscais. Em Portugal, uma resolução expedida em 2001 orienta o
setor público, na linha legal, a utilizar a arbitragem Em decorrência das privatizações e dos novos
paradigmas do direito administrativo moderno, flexibilizou-se as normas
contratuais procurando o equilíbrio entre os contratantes, enaltecendo a
lealdade contratual e que estes tipos de contratos eram de colaboração. Assim,
diversas leis foram editadas e nelas inseridas a solução extrajudicial de
conflitos. Atualmente, os países cada vez mais reivindicam a
participação privada em empreendimentos públicos, para fazer face aos
vultosos investimentos. Exemplos significativos foram os contratos de concessão
vinculados à ampliação da Rodovia dos Imigrantes, em São Paulo, e a construção
do Eurotúnel (em que a arbitragem foi amplamente utilizada). Para os setores conservadores, que pretendem uma aplicação
restritiva da arbitragem para a administração pública, lembramos que desde os
tempos imperiais ela se faz presente, tais como nos contratos de concessão da
Leopoldina Railway, Western Telegraph e outros. A Suprema Corte, no caso Lage,
referendou este entendimento e, em 1999, o Tribunal de Justiça do Distrito
Federal esclareceu que se aplicam aos contratos administrativos a legislação
privada, quando apreciou a inserção da cláusula de arbitragem em contrato de
ampliação da estação de tratamento de esgotos de Brasília. Recentemente, dois precedentes na área têm suscitado
perplexidade e repercussões internacionais nefastas ao país. São
entendimentos equivocados, desalinhados com os novos textos legais e seus princípios.
O primeiro originado do Tribunal de Contas da União (TCU), envolvendo a
Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial (CBEE). O TCU determinou a
exclusão da arbitragem nos contratos, pois "referida cláusula era contrária
à administração pública", como se a arbitragem fosse uma figura espúria.
O outro foi pleito da Companhia Paranaense de Energia (Copel), no qual o Judiciário
obstaculizou procedimento arbitral instaurado no exterior, não atentando ao
estipulado no contrato e em convenção internacional, recém vigente no
ordenamento interno. No edital e nas tratativas contratuais, a administração
pública inseriu as cláusulas arbitrais. Agora, no caso da Copel, a administração
pública diz que a cláusula de arbitragem é nula, que não poderia submeter-se
à arbitragem por faltar-lhe competência e por ser a matéria de direito
indisponível. A capacidade para contratar da administração pública
é indiscutível. A matéria objeto do contrato é de interesse público
derivado, patrimonial (compra e venda de energia). Na seara internacional essa
conduta já é conhecida, sendo que em 1988 o Instituto de Direito
Internacional, por meio de resolução, esclareceu que "um Estado, uma
empresa de Estado ou uma entidade estatal não podem invocar sua incapacidade de
concluir uma convenção de arbitragem, para recusar a participar de uma
arbitragem que haviam consentido”. Estes casos representam a antítese do que se verifica
no mundo. Em Portugal, por exemplo, uma resolução expedida pelo Conselho de
Ministros em 2001 orientando o setor público, na linha legal, a utilizar a
arbitragem, determinou que "o reforço da qualidade da democracia e o
aprofundamento da cidadania sugerem também a construção de uma nova relação
do Estado com os cidadãos e com as empresas. Exige que o Estado, ele mesmo,
voluntariamente, aceite e promova exemplarmente a resolução de seus litígios
fora dos tribunais." Os bons ventos de além-mar precisam ecoar em plagas
brasileiras. Este é o sexto de uma série de 10 artigos sobre
arbitragem a ser publicada nesta página. Selma Ferreira Lemes é coordenadora
e professora do curso LLM de Direito Arbitral do IbmecLaw em São Paulo, membro
da comissão relatora da Lei de Arbitragem e advogada e mestre em direito
internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). |