12/8/2003 -
O Uso da Arbitragem nas Relações de Consumo
Fonte: Valor Econômico
Autor: Selma Ferreira Lemes
Quando o assunto é arbitragem nas relações de consumo, as discussões, no Brasil, abdicam da
racionalidade e razoabilidade e resvalam para a passionalidade. São aqueles temas tabus, que
precisam ser enfrentados e desmistificados.
Não existe nenhuma proibição em solucionar controvérsias consumeristas por arbitragem. Ao
contrário, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) - Lei nº 8.078/90- textualmente incentiva a
utilização dos mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo no parágrafo V do
artigo 4º. Todavia, a celeuma se instala quando se verifica que o legislador erigiu no rol das
denominadas cláusulas abusivas as que "determinem a utilização compulsória da arbitragem"
(parágrafo VII do artigo 51). Contudo, entendemos que a nova Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96)
revogou o referido dispositivo, já que a abordagem é nova e as premissas diferentes.
Nos denominados contratos de adesão - aqueles em que as partes assinam sem poder negociar as
cláusulas -, a lei de arbitragem outorgou-lhes tratamento peculiar ao estabelecer que a
iniciativa à arbitragem, nestas condições, deve partir do consumidor, e não lhe pode ser imposta.
Há certos formalismos que devem ser respeitados, tais como a cláusula estar em negrito, com visto
especial ou em documento separado. São requisitos de proteção ao consumidor e não se prestam a
abusos, tais como exigir que o consumidor assine o contrato com a cláusula inserida ou não
esclarecer a ele o que isso significa. Nestas situações, a arbitragem somente terá força
vinculante para o proponente (empresa) e não para o aderente (consumidor), que poderá, se quiser,
dirigir-se ao Poder Judiciário.
Mas, à parte estas filigranas jurídicas, no momento atual muito mais importante revela-se
incentivar o uso dos sistemas extrajudiciários de solução de disputas e, para tanto, instituir
órgãos sérios, idôneos e competentes para gerenciar processos e solucionar conflitos envolvendo o
fornecimento de bens e serviços aos consumidores. As referidas instituições poderiam atuar em
conjunto com órgãos públicos (federal, estadual ou municipal) e entidades vinculadas aos dois
lados envolvidos - empresas e consumidores - e processar arbitragens gratuitas ou a custos
ínfimos. As áreas mais convidativas, entre outras, seriam as dos serviços de reparação de
automóveis,seguros, bancários, tinturarias, aquisição de eletrodomésticos etc. Nenhum
impedimento legal existe, basta ser pró-ativo, ter boa vontade e descortino.
Atualmente, muitas empresas já perceberam que resolver rapidamente este tipo de problema agrega
valor aos seus produtos e atividades, tal como quando instituíram a figura do ouvidor (ombudsman)
nas empresas. O consumidor precisa apenas estar devidamente informado de como deve proceder
diante de um problema, informação esta prestada pelo fabricante ou prestador do serviço. A
reclamação poderá ser efetuada na instituição indicada, que, com independência, imparcialidade,
lisura, transparência e profissionalismo, resolverá gratuitamente a controvérsia. Não demanda
cláusula arbitral tradicional no contrato, mas cláusula em que a empresa oferece a possibilidade
de solucionar a questão por arbitragem, se o consumidor assim desejar, ficando livre para acorrer
à instituição arbitral indicada ou ao Judiciário. É indubitável que está iniciativa insere-se no
contexto da responsabilidade social da empresa.
Em 1999 o então ministro da Justiça recebeu proposta de um plano piloto para desenvolver a
arbitragem nesta área, com a colaboração conjunta do setor público e privado. Mas esta iniciativa
dormita até hoje nos escaninhos da Secretaria de Direito Econômico (SDE).
Na União Européia esta preocupação está em pauta desde 1985 e inúmeras iniciativas foram adotadas
para facilitar o acesso à Justiça pelos consumidores, atentando para a necessidade de proteção em
face das desigualdades dos poderes do mercado, o excessivo custo dos processos judiciais
(comparado com as quantias em litígio), a falta de familiaridade do consumidor com o jargão
jurídico e os tribunais (rígido formalismo do procedimento e demora dos processos) etc. Hoje está
implantada a Rede Extrajudicial Européia e a arbitragem foi estendida até para o comércio
eletrônico.
Em Portugal, os Centros de Resolução de Disputas Consumeristas são líderes da arbitragem,
registrando entre 2000/2001 uma média de dez mil casos. A Argentina, cuja legislação de consumo
também fomenta a arbitragem, regulamentou a instituição do Sistema Nacional de Consumo que, em
2002, registrou 2.698 sentenças arbitrais.
Em São Paulo há arbitragens consumeristas no Conselho Arbitral de São Paulo (Caesp) , que firmou
com a empresa General Electric (GE) convênio em que esta se compromete frente aos seus
consumidores, nos casos indicados, a aceitar a arbitragem, se assim preferirem, em vez de
dirigirem-se ao Judiciário. Enfim, a necessidade de dotar o Brasil de um sistema nacional de
solução de conflitos de consumo constitui agenda inadiável da sociedade brasileira.
Este é o quarto de uma série de 10 artigos sobre arbitragem a ser publicada nesta página.
Selma Ferreira Lemes é coordenadora e professora do curso LLM de Direito Arbitral do IbmecLaw em
São Paulo, membro da comissão relatora da Lei de Arbitragem e advogada e mestre em direito
internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)