ARBITRAGEM E CONSTRUÇÃO CIVIL Por
Flávia Bittar Neves A
utilização da arbitragem no setor da construção civil como forma
extrajudicial de solução de conflitos é uma realidade mundial, e vem
crescendo consideravelmente, em função dos benefícios gerados às partes,
tais como celeridade e especialidade do julgamento. Nenhuma
outra área reúne tamanha diversidade de pessoas e entidades com variadas
profissões aplicadas em diversos estágios do projeto, quanto a construção
civil. Efetivamente, no universo que envolve o projeto de construção podem
surgir problemas envolvendo a construtora, o profissional responsável pela
obra, projetistas, fornecedores e prestadores de serviços e, principalmente, o
consumidor final, gerando demandas complexas e específicas. De
fato, a atividade da construção civil se realiza através de um processo dinâmico
e detalhado, que pode envolver complexos sistemas de gerenciamento. Pressupõe
esforços coordenados de forças-tarefas compostas de participantes
independentes, onde cada um possui diferentes especialidades e todos almejam o
lucro. A falta de solução imediata de um problema pode gerar atrasos no
projeto, prejudicar os relacionamentos profissionais, reduzir a eficiência,
provocar reclamações e disputas, podendo, em certos casos, terminar em
verdadeiro litígio. A
arbitragem se mostra perfeitamente adequada à solução de conflitos dessa
natureza, enquanto a solução judicial está longe se ser uma forma satisfatória
da prestação jurisdicional, considerando-se a morosidade do procedimento e a
falta de especialidade do juiz estatal na matéria objeto da controvérsia. Em
demandas que envolvem a construção civil o juiz estatal deve valer-se do auxílio
de um perito, por ele escolhido, que lhe fornecerá as informações necessárias
para formar seu convencimento e decidir a questão. Assim,
a decisão do processo será baseada na avaliação pericial de um profissional
de confiança do juiz, e não necessariamente das partes envolvidas no litígio.
A decisão, por sua vez, será passível de ataque por uma vasta gama de
recursos, que são largamente utilizados pela parte vencida. Não há dúvidas
de que a litigiosidade do processo judicial desgasta o relacionamento comercial
das partes, impedindo-lhes, na maioria das vezes, que realizem novos negócios
no futuro. Resolver
conflitos fora do âmbito do Poder Judiciário gera notórias vantagens. Os usuários
reconhecem que a experiência extrajudicial pode ser mais econômica, célere,
satisfatória, menos competitiva e confidencial. Na
esfera do Juízo Arbitral, as partes têm a prerrogativa de indicar o(s) árbitro(s)
para solucionar o litígio, conforme a sua capacidade profissional relativa ao
caso concreto. Dependendo da opção das partes – árbitro único ou tribunal
arbitral – um ou mais especialistas na matéria poderão ser indicados para
julgar a controvérsia, e não apenas para orientar a formação do
convencimento do julgador, de forma que, na arbitragem, a decisão será tomada
por pessoas de efetiva confiança das partes. Além disso, a decisão arbitral
–, que possui a mesma eficácia da decisão judicial – não é passível de
recurso, devendo a sentença ser imediatamente cumprida pela parte condenada,
sob pena de execução da mesma, que constitui título executivo judicial. Em
contratos internacionais, é comum o surgimento de questões a aplicabilidade de
leis estrangeiras (com as quais as partes não são familiarizadas), barreiras
culturais e lingüísticas entre as partes, localização de provas e
testemunhas no estrangeiro, etc. Por estas e outras razões é que se recomenda
às partes de um contrato internacional de construção civil que já no momento
da assinatura do contrato manifestem a intenção de utilizar as formas
alternativas de solução de conflito, antes que haja a remota possibilidade de
surgimento da controvérsia, de modo que, quando de seu nascimento, a forma de
solucioná-la já esteja pactuada. Optando-se por uma destas formas, as partes
terão mais facilidade e flexibilidade para solucionar as questões
controversas, de forma a não prejudicar a execução do projeto. Além
da arbitragem, outras formas alternativas de solução de conflitos (ADR –
Alternative dispute resolution) podem ser aplicadas para resolver os
problemas que envolvem um projeto de construção civil, dentre os quais a mediação,
o uso de partnering e de Dispute Review Boards. O
uso destes instrumentos antes da arbitragem visa aproximar as partes diretamente
envolvidas no litígio, dando-lhes mais de uma oportunidade para resolver a
questão entre si, antes de levar a causa diretamente a julgamento pelos árbitros.
O
sucesso das negociações entre as partes implica na redução de custos com o
procedimento arbitral, muito embora este seja necessário para atribuir ao
acordo a força de título executivo judicial, uma vez que os outros
instrumentos retro-mencionados não produzem decisão de caráter obrigatório
para as partes. Assim, visualizando-se a possibilidade de acordo entre as
partes, o ideal é que se institua o procedimento de arbitragem para que o
acordo seja declarado mediante sentença, constituindo-se em título executivo
judicial. Feito isto, as partes terão em mãos um título definitivo, podendo
ser executado em caso de descumprimento do acordo, impedindo, ainda, que as
partes voltem a discutir acerca do mesmo objeto. Verifica-se,
na prática, tendência das partes em postergar a solução das disputas para após
o término do contrato. Todavia, a falta de solução dos problemas pode, por
exemplo, determinar a suspensão de pagamentos, o que gera insegurança e
confronto nos relacionamentos entre os vários envolvidos no projeto, podendo
causar atrasos e até mesmo rompimento de contratos. Além
de afetar desfavoravelmente o tempo de execução do contrato, atrasos e
rompimentos causam aumento de custos para os participantes do projeto, fazendo
com que surjam novas reivindicações e controvérsias, tornando o conflito cada
vez mais complexo. Na
medida em que pequenos problemas se transformam em conflito, há um aumento
proporcional nos custos do projeto, no nível de hostilidade entre as partes, no
tempo necessário para alcançar uma solução definitiva e nos valores gastos
pelas partes para resolver o conflito. De fato, quanto mais tarde forem tomas as
decisões críticas e efetuadas as alterações necessárias, maior será o
custo de tais decisões e alterações. Quanto mais cedo as partes utilizarem os
instrumentos de prevenção de conflitos e das técnicas alternativas de resolução
dos mesmos, maiores serão os dividendos do projeto para todos os envolvidos.
Muitas vezes, os custos gerados pela tardia solução de um conflito, podem
acabar por absorver a rentabilidade do projeto. Uma
forma interessante utilizada na construção civil é a realização do
procedimento denominado Standing Arbitration Panel, que se realiza
a partir da constituição prévia de um árbitro ou tribunal arbitral, que serão
escolhido pelas partes logo no início da execução do projeto, capaz de tomar
decisões imediatas a respeito de qualquer conflito surgido no decorrer da
construção e que as partes não tenham sido capazes de solucionar sozinhas.
Tais decisões serão imediatamente vinculantes e obrigatórias. A pronta
disponibilidade dos árbitros, a rapidez com que as decisões serão tomadas e a
possibilidade de conhecer todas as disputas ocorridas durante a história do
projeto faz com que as partes tenham maior preocupação em agir de boa-fé,
ficando desencorajadas de praticar atos protelatórios e de tomar decisões
extremas e inviáveis. Na
prática, a natureza deste procedimento, mantendo os julgadores em stand by, minimiza
o número de disputas a serem levadas aos árbitros. Muito embora o processo de
escolha, indicação e orientação dos árbitros gere despesas, os custos serão
mínimos – ainda que os árbitros sejam chamados a atuar para solucionar
controvérsias – se comparados com os custos de uma demanda judicial ou uma
arbitragem realizada somente ao final do projeto. É
relevante salientar que a melhor forma de se optar pela arbitragem é no momento
da contratação, quando não há nenhuma litigiosidade entre as partes, através
da inserção da cláusula compromissória no(s) contrato(s), que deverá
claramente indicar a matéria a instituição que conduzirá a arbitragem, a lei
aplicável, bem como o local de realização e a língua a ser utilizada. ·
Casos (exemplos
práticos) Channel
Tunnel (Túnel
no Canal da Mancha que liga a França à Inglaterra) Para
a construção do Channel Tunnel, foi determinado no contrato de construção
que qualquer controvérsia relativa à sua execução seria resolvido em duas
etapas. A primeira etapa consistiria na utilização de qualquer das formas
alternativas de solução de conflito que não produzem decisão obrigatória e
vinculante para as partes – normalmente, a mediação. Caso este procedimento
não fosse bem sucedido, não se chegando a um acordo para solucionar a controvérsia,
as partes deveriam valer-se da arbitragem. Durante
a execução da obra, vários conflitos foram resolvidos através da mediação
e da arbitragem, encontrando-se soluções rápidas e eficazes aos problemas,
impedindo o atraso ou a paralisação do projeto. THE
BOSTON CENTRAL ARTERY/TUNNEL PROJECT (COMPLEXO
VIÁRIO DE BOSTON – EUA) O
complexo viário de Boston é um dos maiores e mais complexos projetos rodoviários
já realizado, cuja duração será de aproximadamente 10 anos e os custos
excederão 6 bilhões de dólares. O projeto fica localizado no centro da cidade
de Boston, cercado por três cursos de água. Espera-se a realização de cerca
de 100 contratos de construção ligados ao projeto, alguns deles com valores
estimados entre 200 e 300 milhões de dólares. Adicionalmente, centenas de
sub-contratos estão envolvidos, além de contratos de gerenciamento da obra,
planejamento preliminar e final e serviços geotectônicos. Devido à
complexidade do projeto, o potencial de surgimentos de disputas é considerável,
motivo pelo qual foi previamente estipulado um esquema de utilização de formas
alternativas de solução de conflitos para funcionarem como "filtro"
dos problemas, a fim de evitar que se transformem em verdadeiras demandas
judiciais. Tais "filtros" compreendem as seguintes etapas: 1
– Partnering – consiste no empenho de facilitadores treinados para
educar todos os participantes do projeto no sentido de trabalharem em conjunto,
com mútua colaboração visando à obtenção de metas comuns, a fim de prevenir
conflitos. 2
– Authorized representative – procedimento segundo o qual, na medida
em que forem surgindo as reclamações, as mesmas são apresentadas a um
"representante autorizado" de cada parte, que deverá conhecer a questão
e proferir uma decisão a respeito. 3
– Dipute Review Board (DRB) – No inicio da execução do contrato, três
participantes são escolhidos para formar um painel responsável pela solução
dos conflitos que lhe forem apresentados. Tais participantes são tecnicamente
qualificados na matéria objeto do contrato controverso, dos quais um deles
deverá ser indicado para presidir o painel. Os participantes do painel deverão
estar familiarizados com os detalhes do contrato em questão, devendo iniciar o
processo de solução da disputa tão logo a reclamação chegue ao seu
conhecimento. O procedimento padrão a ser seguido consiste na realização de
reuniões, em que são ouvidas ambas as partes, para que os técnicos do painel
profiram uma decisão. 4
– Mediação – A mediação deve ser realizada durante uma das reuniões do
painel de técnicos , a fim de aproximar as partes favorecendo a realização de
acordo. Se a questão for resolvida através da mediação (ou outra forma de
solução de conflitos), as partes devem imediatamente informar o painel por
escrito, o qual não mais terá qualquer autoridade para solucionar o conflito. THE
HONG KONG AIRPORT CORE PROGRAMME (AEROPORTO
DE HONG KING) A
construção de aeroporto de Hong Kong é um dos maiores projetos de engenharia
civil do mundo, abrangendo a construção do aeroporto em si e das vias de
acesso a ele. Para
a solução dos eventuais conflitos, foram definidas quatro etapas: 1) decisão
por um técnico em engenharia; 2) mediação; 3) adjudicação; 4) arbitragem. O
contrato dispõe que nenhuma medida judicial poderá ser tomada antes de
esgotadas as etapas acima referidas, determinando ao empreiteiro que não
paralise a obra durante o processo de solução do conflito (a menos que a obra
já esteja finalizada). Qualquer
das partes poderá requerer a instauração do processo de mediação, e se este
procedimento não for bem sucedido, a controvérsia deverá ser submetida à
adjudicação ou à arbitragem. Os
procedimentos de mediação, adjudicação e arbitragem são administrados pela Hong
Kong International Arbitration Center (HKIAC). ·
Conclusão A
arbitragem é um instrumento cada vez mais utilizado para dirimir as controvérsias
surgidas no âmbito de uma relação contratual que tenha por objeto a construção
civil. De fato, não sendo possível uma solução pacífica do conflito entre
as próprias partes, a melhor forma de solucioná-lo é através da arbitragem,
procedimento em que as partes têm a opção de indicar os árbitros de sua
confiança e que sejam experts no assunto objeto da controvérsia. O
procedimento arbitral é muito mais célere, dinâmico, flexível e eficaz do
que o procedimento judicial, gerando segurança às partes uma vez que a sentença
que for proferida será imediatamente obrigatória e irrecorrível. A
opção de constituição do tribunal arbitral logo no início da execução da
obra, permanecendo em stand by e podendo ser acionado imediatamente após
o surgimento do conflito, diminui consideravelmente os riscos de paralisação
do projeto ou rompimento da relação contratual, de atraso e aumento dos custos
da obra, viabilizando a preservação do relacionamento comercial entre as
partes e o sucesso do projeto como um todo. 1
Advogada, Secretária Geral da Câmara de Arbitragem Empresarial - Brasil
(CAMARB), especializada em Direito Arbitral pela Università Degli Studi di
Milano, Milão - Itália, Pós-graduada em Gestão de Negócios pela Fundação
Dom Cabral.
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