Lei de arbitragem: reflexões críticas

José de Albuquerque Rocha

Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

Pós-doutorado nas Universidades de Paris II e Londres

SUMÁRIO: 

Primeira parte: premissas político-ideológicas da lei de arbitragem.
1. Introdução.
2. O retorno do liberalismo.
3. O sistema do mercado.
4. Arbitragem e mercado.
5. Crise do Judiciário, arbitragem e liberalismo.
6. Riscos decorrentes da Lei de Arbitragem.
7. Vantagens.
8. Conclusões.

Segunda parte: questões constitucionais.
1. Natureza Jurídica da arbitragem.
2. Arbitragem e monopólio estatal a jurisdição.
3. Arbitragem e direito de acesso ao Judiciário.
4. Arbitragem e juízo ou tribunal de exceção.
5. Possíveis inconstitucionalidades.

PRIMEIRA PARTE 1. Introdução Ainda é comum no Brasil, entre os autores de trabalhos jurídicos, o hábito de tratar o Direito apenas do ponto de vista da dogmática. Como sabemos, a dogmática é o estilo de ciência do Direito que tem por objeto o estudo das normas com independência das realidades social, política, econômica, ideológica e cultural, que são consideradas metajurídicas. Entendemos, porém, ser o Direito parte da sociedade na qual opera. Por isso, o adequado entendimento de sua origem, objetivos e conseqüências exige o conhecimento da natureza do mundo social em geral. O que significa dizer que teorias da sociedade, da política, da economia e do direito estão inter-relacionadas. Relacionamento tão intenso que a visão do jurista sobre a organização e natureza do Estado, por exemplo, mesmo não tematizada (consciente), como soe acontecer, afeta sua concepção do Direito. Por tais razões, reforma legislativa como essa da lei de arbitragem não pode ser compreendida isolada do contexto social, político, econômico e ideológico em que surge, porque é exigência desse contexto e, ao mesmo tempo, resposta a essa exigência. Vale dizer, a lei de arbitragem deve ser considerada em uma perspectiva histórica e dentro de sua tessitura social. O que é imprescindível não só para o entendimento de suas funções, mas igualmente para a solução dos inúmeros problemas que decorrem de seu enquadramento no sistema jurídico. Portanto, o objeto deste trabalho é fazer, na primeira parte, uma breve pesquisa sobre as premissas político-ideológicas que condicionam a compreensão de sentido de suas normas. Após isto, e com base nos dados obtidos da pesquisa, investigamos, na segunda parte, as relações entre a lei e a Constituição.

2. O retorno do liberalismo Vivemos sob o signo do pensamento liberal ou neoliberal. Evidentemente, não é nossa intenção dissertar sobre o liberalismo porque isso é estranho ao objeto do trabalho e trata-se de assunto suficientemente analisado e desenvolvido a prescindir de mais considerações. Aqui, o estudamos na exata medida do estritamente necessário ao esclarecimento das premissas ideológicas da lei de arbitragem e dos fins a que serve. O relançamento do liberalismo é uma consequência direta da crise do Estado Social (welfare state). A tese sustentada pelo liberalismo é que o desmoronamento do Estado Social é decorrência do funcionamento imperfeito do livre jogo dos interesses individuais (mercado) em virtude da interferência estatal. Para os liberais, a solução está, pois, em eliminar a intervenção do Estado na liberdade dos indivíduos, por ser o sistema da livre iniciativa individual o que permite mobilizar, o melhor possível, as informações, conhecimentos e competências necessários à regulação da vida social. Vê-se desse lacônico registro que o postulado básico do liberalismo é a liberdade dos indivíduos justamente porque os liberais acreditam, como vimos acima, serem os indivíduos os melhores defensores de seus interesses. Ademais, em trabalhando por seu próprio proveito, cada indivíduo concorreria naturalmente, isto é, sem o querer, ao desenvolvimento da riqueza de todos (mão invisível de Adam Smith). Por tal motivo, o Estado não deve se imiscuir nesse processo espontâneo, já que os particulares concedem mais atenção para preservar e aumentar suas riquezas e resolver seus conflitos do que o Estado poderia fazê-lo, e, assim agindo, concorreriam ao desenvolvimento do todo. Conclui-se, pois, ser o liberalismo uma concepção individualista ou atomista da sociedade, a implicar duas consequências complementares: 1) a regulação da vida social deve resultar preferencialmente da livre competição entre os indivíduos (mercado); 2) em consequência, a intromissão do Estado só se justifica para garantir a liberdade individual. Daí a tese do Estado mínimo. E do Direito mínimo, acrescentamos nós, uma vez que um sistema jurídico liberal seria caracterizado por ser composto de um reduzido número de normas estatais, certo de que a vida social seria regulada principalmente por regras formuladas pelos próprios indivíduos.

3. O sistema do mercado Antes de mais nada, é preciso separar o mercado da doutrina do liberalismo. Embora realidades conexas, não se confundem. Mercado, segundo Manfredo Araújo de Oliveira, é uma realidade empírica resultante da práxis social. O liberalismo é uma doutrina que elabora seus conceitos básicos a partir do mercado. Vale dizer, o liberalismo é um modelo teórico destinado a permitir a explicação de uma dada realidade econômica tendo por base o mercado. Mais do que isso, diríamos, ainda com Manfredo Oliveira, ser o liberalismo uma verdadeira filosofia, já que contém uma concepção implícita do mundo, da natureza, da vida social e do ser humano. Vimos que o valor mais importante para o liberalismo é a liberdade dos indivíduos para tomar as decisões mais convenientes a seus interesses. Por outras palavras, liberdade para regularem suas próprias ações. E o mercado o que seria? O que os liberais chamam de mercado é justamente o sistema de regulação das ações sociais, constituído pelo conjunto dessas tomadas de decisões individuais auto-reguladoras dos próprios interesses, com base na liberdade individual. Ou, na correta definição de Manfredo Araújo de Oliveira, um mecanismo de coordenação das ações sociais baseado nas trocas voluntárias, na propriedade privada e na formação de preços mediante competição ("Ética e Economia", p. 61). Para tornar mais fácil o entendimento dessa definição do mercado, basta confrontá-la com a de seu oposto, o sistema do planejamento. Este é também um sistema de regulação das ações sociais. No entanto, o planejamento é fundado nas decisões de uma autoridade central (heteronomia), enquanto o mercado é fundado nas decisões tomadas livremente pelos indivíduos (autonomia). Assentadas brevemente as noções de liberalismo e mercado, a tarefa agora é surpreender os laços entre êles e a lei da arbitragem. É o objeto do próximo número.

4. Arbitragem e mercado
Vimos ser o mercado um sistema de regulação das relações sociais baseado fundamental-mente na liberdade dos indivíduos, que é a peça essencial da formação dos contratos, os quais são, para o liberalismo, a alavanca suprema da vida social, econômica e jurídica. Se a liberdade dos indivíduos é o pressuposto do sistema do mercado, ou seja, o antecedente necessário do mercado, no sentido exposto acima, então o critério correto para descobrir as relações entre ele (mercado) e a arbitragem é o de verificar se o elemento essencial desta última coincide com o elemento essencial do mercado, a liberdade individual. Para mostrar isso, vamos seguir dois procedimentos autônomos, embora conectados: primeiro analisamos a estrutura da arbitragem; em seguida, a cotejamos com o sistema que lhe é oposto, isto é, o sistema judiciário de solução de conflitos. A estrutura da arbitragem funda-se essencialmente na liberdade dos indivíduos, pois, em sua base, estão dois contratos que, como sabemos, são, até por definição, a expressão da liberdade individual: um contrato entre as partes litigantes, pelo qual escolhem a arbitragem como forma de solução do conflito; e outro entre os litigantes e o árbitro, tendo por objeto a obrigação deste de decidir o conflito em nome e por mandado das partes. Portanto, a liberdade das partes é o elemento nuclear da arbitragem, estando presente em três momentos essenciais de sua estrutura: primeiro, na liberdade de escolher a arbitragem como forma de solução do conflito; segundo, na liberdade de escolher o árbitro; terceiro, na liberdade de estipular o conteúdo dos contratos, isto é, regular todos os aspectos relevantes da arbitragem, tais como: a escolha das questões a serem decididas pelo árbitro, pois nem sempre as partes têm interesse de submeterem à decisão todas as questões que compõem o conflito; o procedimento a ser observado pelo árbitro; o critério de julgamento, isto é, o critério em função do qual o árbitro decidirá, se com base no direito em geral, ou em um certo setor do direito, ou nos usos e costumes, ou nos princípios gerais, ou na equidade, ou nas regras internacionais de comércio, etc.. Por sua vez, o cotejo da arbitragem com o sistema judiciário, que é seu oposto, confirma, igualmente, ser a liberdade individual a coluna central de sua estrutura, de vez que no sistema judiciário tudo é regulado pela lei, enquanto na arbitragem acontece justamente o contrário, vale dizer, tudo, praticamente, é regulado pelas partes no exercício de sua liberdade. Dessa forma, examinada a arbitragem à luz do critério proposto que toma como ponto de referência a importância decisiva da liberdade individual em sua constituição, não há dúvida de que se trata de um caso típico de aplicação do mecanismo do mercado à solução dos conflitos de interesses, já que seu relevo jurídico depende, indispensavelmente, da liberdade dos interessados que é, como mostramos, o elemento central do sistema do mercado.

5. Crise do Judiciário, arbitragem e liberalismo
Acabamos de expor a relação entre a arbitragem e o mercado para mostrar que a arbitragem é uma solução de mercado, portanto, inspirada na ideologia liberal. Qual, porém, a relação entre a arbitragem e a crise do judiciário? Neste item vamos tentar explicar justamente essa relação. É inegável a grande influência da crise do Judiciário como um poderoso estímulo para a busca de uma saída capaz de superar seus efeitos. Em outros termos, as disfunções do Judiciário, principalmente a lentidão dos processos, seus custos e o formalismo excessivo, desencadearam um movimento de crítica que contribuiu para conscientizar as pessoas da necessidade de adotar soluções para a crise. Portanto, a arbitragem é uma forma de resposta à crise do Judiciário. No entanto, o que a crise do Judiciário não explica é porque a escolha da solução recaiu justamente sobre a arbitragem, e não sobre outra forma. Nem explica também o conteúdo específico da lei de arbitragem. Isso significa dizer que a função da crise foi suscitar a necessidade de alguma forma de providência para contorná-la. Entretanto, foi o liberalismo, enquanto ideologia, quem induziu o legislador a escolher a arbitragem e o guiou quanto ao conteúdo de sua disciplina normativa. Em resumo, a crise provocou a reação do legislador, mas foi o liberalismo quem o orientou quanto à solução do problema. Por conseguinte, a arbitragem é uma resposta à crise do Judiciário, mas uma resposta de tipo liberal. Pelo que, poderíamos dizer sinteticamente ser a arbitragem uma resposta do liberalismo à crise do Judiciário.

6. Riscos decorrentes da lei da arbitragem Demonstrada a filiação ideológica da arbitragem aos princípios do mercado, cumpre agora examinar os riscos derivados da aplicação desses princípios a setor tão importante e sensível da vida social como o da solução dos conflitos. Por outras palavras, cabe verificar se a arbitragem atende às exigências éticas, inseparáveis de um sistema de solução de conflitos sociais, no sentido de sua conformação a uma norma de justiça. Se perguntarmos aos liberais se a arbitragem é um procedimento justo, é certo que responderão afirmativamente, justificando com o argumento de que a arbitragem é um contrato, expressão do livre consentimento dos contratantes, portanto, moralmente legítimo. A resposta dos liberais seria incensurável se sua premissa, a liberdade dos indivíduos, fosse verdadeira. Acontece, porém, que o liberalismo trabalha com uma concepção abstrata de liberdade. Contempla as pessoas dessocializadas, o que significa não prever as conseqüências das relações sociais. Esquece que por trás da liberdade teórica estão sempre as relações de poder que desigualam as pessoas socialmente e limitam sua liberdade de escolha. Vale dizer, olvidam o fato de que a liberdade utópica não significa que as partes estejam em igualdades de condições para impor seus interesses na relação contratual. Daí a precisa crítica marxista às liberdades formais do liberalismo, frente às quais proclama a necessidade de estabelecer as liberdades reais. Ou, dito por outras palavras, de nada serve ser titular de direitos e liberdades se a inquietude pela sobrevivência impede de exercitá-los e reclamá-los. A liberdade nominal dos liberais só serve para esconder a desigualdade real, legitimar as relações de poder existentes, justificando as imposições dos mais fortes aos mais fracos, gerando, para a maioria, carência de educação, saúde, alimentação, habitação e outros bens necessários a um mínimo de dignidade. Em resumo, a mão invisível de Adam Smith funciona em sentido contrário: ao invés de criar equilíbrio social, produz concentração de riqueza de um lado, e pobreza e submissão das classes sociais mais débeis, do outro lado. Nesse sentido, a insuspeita opinião do investidor George Soros, para quem os economistas que tomam os mercados por perfeitos e naturalmente tendentes ao equilíbrio estão afastados do mundo real ("Folha de S. Paulo", de 22/2/98, pp. 5-7). O fundamental, pois, é estabelecer uma política econômica que impeça a exploração da maioria despossuída pela minoria e permita redistribuir as rendas de forma a assegurar a todos os meios necessários para desenvolver uma vida minimamente digna. Sendo assim, para que a arbitragem possa ser considerada como o resultado de uma livre escolha das partes e não como uma injunção dos mais poderosos aos mais débeis, é imprescindível haver algum tipo de mecanismo que assegure um mínimo de equilíbrio na relação de poder entre as partes, para que possam gozar de condições concretas que lhes assegurem igual possibilidade de participar na formação dos contratos de que resulta a escolha da arbitragem como forma de solução do conflito. Só assim o acordo de vontades de que resulta a arbitragem pode ser reputado como expressão da liberdade das partes e, portanto, como legítimo. Em sociedades onde as diferenças sociais e econômicas são menores, como nos países do chamado primeiro mundo, em que as classes populares, desde o século passado, organizaram-se e lutam desde então, tenazmente, para diminuir essas desigualdades, a arbitragem pode funcionar com aceitável legitimidade. No entanto, em países dilacerados por violentos contrastes econômicos, sociais e culturais, a aplicação irrestrita da arbitragem, tal como delineada na lei brasileira, corre sério risco de transformar-se em mais um instrumento de aniquilamento dos direitos dos mais fracos pelos mais fortes, ou no retorno puro e simples ao regime da autotutela. Em poucas palavras, a lei de arbitragem, possivelmente, a mais liberal entre os países de nosso contexto jurídico-cultural, está sujeita a converter-se em mais uma ferramenta de conservação de uma das maiores concentrações de riqueza do mundo. Daí a necessidade de aperfeiçoamento da lei para impedir que venha a desempenhar a função negativa de mecanismo de redução dos interesses da maioria em benefício da minoria privilegiada. Inclusive, para evitar que possa a lei sofrer um questionamento geral quanto à sua constitucionalidade em face do artigo 3º e seus itens da Constituição; que atribui ao direito a função de promover a transformação da sociedade segundo os valores da justiça, igualdade e solidariedade, o que não ocorre com a lei da arbitragem nos termos atuais, que, ao contrário, assegura a reprodução das condições de exploração.

7. Vantagens
Se a arbitragem é uma resposta do liberalismo à crise do Judiciário, logicamente, suas vantagens devem ser apreciadas em relação aos problemas do Judiciário. Tendo em vista isso, a arbitragem apresentaria as seguintes vantagens em relação ao Judiciário:
a) rapidez. No entanto, trata-se de vantagem relativa, pois os árbitros também precisam de tempo para instruir o processo e decidir o conflito. Portanto, tudo depende da dificuldade das questões. As partes podem fixar o prazo para a decisão. Não o fazendo este será de seis meses. De qualquer maneira, é mais rápida do que o Judiciário por não admitir recurso.
b) simplicidade. É uma vantagem da arbitragem, uma vez que o Judiciário tem uma estrutura muito complexa, pesada, burocrática, enquanto a arbitragem é simples.
c) informalidade procedimental. Por sua natureza de meio privado de decisão de conflito, a arbitragem segue um procedimento informal, de poucas regras estabelecidas pelas próprias partes, enquanto o Judiciário observa um procedimento formal no sentido de tudo ser previamente estabelecido por um emaranhado de normas legais.
d) mais barato. É uma vantagem também relativa, de vez que os árbitros são particulares que atuam mediante remuneração. Sendo especialistas, cobram caro, o que pode transformar a arbitragem em uma justiça dos ricos.
e) melhor qualidade da decisão. Se o árbitro for especialista na matéria objeto da decisão, esta deve ser de melhor qualidade do que a de um juiz geralmente leigo no assunto.
f) mais opções de julgamentos. O Judiciário trabalha com um modelo dicotômico de decisões: ou ganha, ou perde. O Árbitro dispõe de uma gama de opcões podendo inclusive coordenar os interesses em conflito, o que contribui para restaurar a interação cooperativa entre os conflitantes.
g) discrição. É uma indiscutível vantagem da arbitragem, que é discreta por natureza, justamente o oposto do Judiciário que é público por excelência.
h) ambiência. Por sua natureza de procedimento consensual, a arbitragem cria uma atmósfera favorável ao entendimento, o que nem sempre ocorre com o ambiente judiciário, geralmente muito solene e impessoal.
i) maior aderência das partes à decisão. Um julgamento proferido por um árbitro escolhido pelas próprias partes tem mais possibilidade de ganhar a adesão delas do que o prolatado por um juiz imposto pelo Estado. Principalmente porque ao contratar a arbitragem, as partes assumem, necessariamente, o dever de acatar e cumprir a decisão.

8. Conclusões
As vantagens da arbitragem, precedentemente enumeradas, evidenciam ser um mecanismo eficaz para o cumprimento dessa importante tarefa que é a resolução dos conflitos sociais. No entanto, como solução de mercado, apresenta os problemas próprios deste sistema e que são de natureza ética, mais especificamente, relacionados com a eqüidade, isto é, com a igual oportunidade de participação das partes nas tomadas de decisões. O que é verdadeiro sobretudo nas relações de consumo em que o consumidor é, sem dúvida, a parte fraca, seja por necessitar do bem, muitas vezes para sua sobrevivência, seja porque são as empresas que estão em condições de produzi-lo por disporem da tecnologia e dos meios para fazê-lo, circunstâncias a colocar o consumidor na contingência de ter de aceitar as imposições do mercado. Diante disso, impõe-se a necessidade de introduzir na lei disposições protetoras do consumidor, como por exemplo, obrigando a criação dos conselhos arbitrais compostos paritariamente pelos grupos sociais implicados, consumidores e empresários, que atuariam toda vez que a arbitragem fosse o meio escolhido para dirimir os conflitos oriundos das relações de consumo, relações de locação, seguros em geral, sistema financeiro de habitação e transportes. Outro setor em que tais conselhos poderiam também ser útil é o dos conflitos sobre a terra e os terrenos urbanos, indiscutivelmente, os mais graves da sociedade brasileira por tratar-se de conflitos de valores para os quais o Judiciário não está preparado, como a experiência tem demonstrado, (só está medianamente apto a absolver e decidir meros conflitos de interesses), sendo este o aspecto mais sério da chamada crise do Judiciário, embora o menos citado pelos que dela têm se ocupado justamente por ser o menos visível. Todavia, o reconhecimento de que a arbitragem é um meio importante de resolução de conflitos não exime o poder público do dever de concretizar a reforma do Judiciário, único sistema capaz de permitir a todos, sem limitações derivadas de condições sociais, econômicas e culturais, a possibilidade de obter tutela efetiva de seus direitos. Finalmente, faculdades de Direito e escolas de Advocacia, Ministério Público e Magistratura devem incluir em seus currículos disciplinas sobre as técnicas e procedimentos da arbitragem, objetivando a formação de especialistas. SEGUNDA PARTE 1. Natureza jurídica da arbitragem Determinar a natureza jurídica de uma instituição é estabelecer seu ser jurídico, ou seja, sua posição no mundo do Direito. É importante por permitir identificar seu regime jurídico, a saber, a espécie de normas que a regulam, que, por sua vez, é indispensável para resolver problemas relacionados com sua constitucionalidade, interpretação, etc. No caso da arbitragem, sua estrutura compõe-se de três elementos:
a) um contrato das partes entre si, pelo qual escolhem a arbitragem como meio de solução do conflito;
b) um contrato entre as partes de um lado e o árbitro de outro, atribuindo ao último o poder de decidir o conflito em nome das partes e a seu mandado; e
c) uma série de normas de Direito público regulando os requisitos de validade da convenção de arbitragem; capacidade, imparcialidade, competência e responsabilidade dos árbitros; algumas garantias das partes quanto ao procedimento e, a mais relevante, a que equipara a decisão do árbitro às sentenças dos membros do Judiciário, dotando-a, assim, de aptidão para produzir a coisa julgada. A arbitragem é, pois, uma instituição complexa: privada em sua origem e pública quanto a seus efeitos. Traduzindo isso em terminologia normativista mais precisa, diríamos ser a arbitragem uma realidade que tem por base uma atividade contratual privada que a lei toma em consideração para erigi-la à categoria de fato jurídico para o fim de imputar-lhe efeitos jurisdicionais, sobretudo o efeito da coisa julgada que é uma característica essencial da atividade jurisdicional. Em outras palavras, a arbitragem, tal como prevista na lei brasileira, é indiscutivelmente atividade jurisdicional desenvolvida por agentes privados. Categorização que não deve causar nenhuma admiração, pois se cuida de situação muito comum no Direito, esta de agentes privados exercitarem poderes públicos, seja por delegação constitucional, legal ou contratual. Sirvam de exemplos outros serviços públicos realizados por particulares, como educação, registros públicos, tabelionatos, etc.
2. Arbitragem e monopólio estatal da jurisdição
Sendo a jurisdição manifestação da soberania, portanto, monopólio do Estado por excelência, o reconhecimento da arbitragem como atividade jurisdicional não estaria em contradição com este monopólio? A resposta é negativa. Para compreendermos melhor devemos separar dois conceitos distintos, embora conexos: o conceito de poder e o conceito de exercício do poder. Distinção, aliás, já feita por Marx, no século passado, quando surgiram as primeiras Sociedades Anônimas, nas quais existe uma clara separação entre o poder dos proprietários (acionistas) e o exercício do poder pela diretoria não necessariamente composta de acionistas, mas, de especilistas, sobretudo hoje. Então, uma coisa é o poder, capacidade abstrata ou potencial de emitir normas que devem ser obedecidas sob pena de sanção. Outra coisa é o exercício do poder, ou seja, sua concretização, atualização ou atuação. Além do exemplo acima da Sociedade Anônima, muitos outros poderíamos dar, bastando lembrar a diferença entre as noções de capacidade de direito ou personalidade e capacidade de fato ou de exercício. Capacidade de direito é a aptidão abstrata para ser sujeito de poderes, direitos e obrigações inerente a todo ser humano. Capacidade de fato ou de exercício é, porém, a aptidão para exercitar tais poderes, direitos e obrigações. De modo que, uma pessoa pode ser titular de poderes e não ter seu exercício ou deferi-los a terceiro. Pois bem, é justamente isso que acontece com a jurisdição. O Estado é seu titular, mas defere seu exercício a agentes privados, constituindo a instituição da arbitragem, que, portanto, não nega o monopólio da titularidade da jurisdição pelo Estado.
3. Arbitragem e direito de acesso ao Judiciário
Como sabemos, o artigo 5º, item XXXV, da Constituição, assegura a todos a garantia fundamental de acesso ao Judiciário para pedir-lhe a tutela jurisdicional contra lesão ou ameaça de lesão a direitos. A arbitragem violaria esse direito? Embora o acesso ao Judiciário constitua garantia fundamental reconhecida em todo o mundo, desde a Revolução Francesa de 1789 até a Declaração da ONU de 1946, entendemos não ser a lei de arbitragem inconstitucional na medida em que ela outorga à parte a possibilidade de escolher outra via para a solução dos conflitos e restringe essa escolha aos conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis, isto é, aqueles a respeito dos quais a vontade dos titulares opera autonomamente. A lei seria inconstitucional se a arbitragem fosse obrigatória, caso em que impediria o acesso ao Judiciário, violando, assim, o direito fundamental que o assegura. Em outras palavras, a arbitragem importa apenas a renúncia, em um caso concreto e a respeito de direitos patrimoniais disponiveis, ao exercício do direito fundamental de acesso à Justiça, hipótese diferente da renúncia, de modo genérico, definitivo e irrevogável, ao direito fundamental de acesso à Justiça, esta sim inconstitucional dada a natureza irrenunciável dos direitos fundamentais. Outro argumento que confirma essa conclusão é o seguinte: o acesso ao Judiciário é forma de exercício dos direitos. Objeto da arbitragem são os direitos disponíveis que se caracterizam por serem regulados pelo princípio da autonomia da vontade, isto é, pelo modo que seus titulares estimem mais oportuno, admitindo inclusive a renúncia, sobretudo quanto a seu exercício, como dispõe expressamente a Constituição nos artigos 5o, itens XXII e XXIII, ao consagrar a propriedade privada, e 170 sobre a liberdade de empresa. Ora, se o titular do direito pode renunciá-lo (princípio da autonomia da vontade), com maior razão pode renunciar a seu exercício por intermédio do Judiciário. Aplica-se ao caso o princípio lógico dos poderes implícitos: quem pode o mais (renunciar ao direito) pode o menos (renunciar a uma forma de exercício do direito).
4. Arbitragem e juízo ou tribunal de exceção
Trata-se de verificar se a Lei de Arbitragem ofende ao princípio da proibição do juízo ou tribunal de exceção (artigo 5º XXXVII da Constituição). Para o melhor entendimento da matéria é preciso fazer breve referência ao princípio do juízo legal. Sucintamente, este princípio significa que os órgãos judiciários são exclusivamente aqueles previstos pela Constituição, ou seja, o legislador não pode criar órgãos diferentes dos estabelecidos na Magna Carta. Ademais, o regime jurídico dos magistrados que os integram é o previsto também pela Constituição. Fundamentalmente, o objetivo do princípio do juízo legal é garantir a imparcialidade e independência da magistratura estabelecidas em benefício dos usuários dos serviços do Poder Judiciário, no sentido de que ninguém pode ser julgado senão pelos órgãos previstos na Constituição e com as garantias que lhes são inerentes. O princípio da proibição do juízo ou tribunal de exceção é uma conseqüência direta do anterior. De fato, o juízo ou tribunal de exceção é justamente a negação do juízo legal. Vale dizer, juízo ou tribunal de exceção é aquele criado para julgamento de um determinado caso, seja diretamente, seja através de manipulações legais, o que supõe sua criação posterior ao fato e, assim, a violação do princípio do juízo legal. Diante disso, cabe a pergunta: a arbitragem não afrontaria tais princípios, uma vez que implica a instituição de uma instância jurisdicional fora das previstas na Constituição? A resposta, de certo modo, está contida nas análises dos itens anteriores. A arbitragem, já o sabemos, é forma de solução de conflitos que a lei coloca à disposição das partes. Cuida-se, pois, de meio voluntário de definição de litígios, isto é, dependente essencialmente da vontade das partes. Não sendo obrigatória, mas facultativa, está afastada qualquer possibilidade de ofensa aos princípios do juízo legal e proibição do juízo ou tribunal de exceção. Outro argumento a confirmar esta conclusão é que juízo legal e proibição de juízo ou tribunal de exceção são garantias deferidas pela Constituição às partes e não deveres que lhes sejam impostos, nada impedindo, pois, possam escolher outros meios para dirimir seus conflitos sobretudo em matéria de direitos patrimoniais disponíveis, onde prevalece o princípio da autonomia da vontade e seu consectário processual que é o princípio dispositivo. Finalmente, cabe lembrar que os princípios do juízo legal e da proibição do juízo ou tribunal de exceção são aplicáveis exclusivamente aos órgãos judiciários, circunstância a afastar sua aplicação à arbitragem que não é órgão judiciário, mas forma de exercício da jurisdição por agentes privados. 5. Possíveis inconstitucionalidades Vamos tratar de três possíveis casos de inconstitucionalidade da lei de arbitragem. Primeiro caso: Artigo 4º, parágrafo segundo. Nas relações de consumo, o consumidor é a parte débil por duas razões objetivas:
a) necessita dos bens ou serviços, às vezes para a própria sobrevivência;
b) só as empresas estão em condições de produzi-los ou distribuí-los, por terem a tecnologia e os outros meios necessários para tanto. Estas duas situações de dependência do consumidor o colocam na contingência de ter de aceitar as imposições do mercado. Por isso, as constituições dos países ocidentais articulam mecanismos de proteção ao consumidor. A Constituição brasileira, em seus artigos 5º, item XXXII e 170, item V, prescreve o dever fundamental do Estado de defender o consumidor, dever que é também princípio essencial da ordem econômica. Desenvolvendo estes mandamentos constitucionais, o Código do Consumidor dispõe no artigo 51, item VII, que é nula de pleno direito cláusula sobre arbitragem inserida em contratos de fornecimento de produtos e serviços. Todavia, a lei de arbitragem, no artigo 4º, parágrafo 2º, reconhece validade à cláusula que impõe a arbitragem nos contratos de adesão, desde que tal cláusula seja de iniciativa do aderente ou se este concordar expressamente com ela. Diante disso, surge a questão: a lei de arbitragem, sendo posterior, revogou o Código do Consumidor nessa matéria? Respondemos negativamente por três razões básicas:
a) a defesa do consumidor, como mostramos, é dever constitucional do Estado. É, hoje, convicção indiscutível e generalizada a de que as normas constitucionais, qualquer que seja sua estrutura e conteúdo, produzem inúmeros e importantes efeitos, entre os quais o de revogar as normas infraconstitucionais anteriores com elas incompatíveis e de nulificar as posteriores igualmente incompatíveis. O artigo 4º, parágrafo 2º da lei de arbitragem é visivelmente incompatível com os princípios constitucionais de defesa do consumidor. Sendo norma ordinária, posterior à Constituição, está nulificada pelo vício da inconstitucionalidade;
b) ademais, as normas do Código do Consumidor são de ordem pública e interesse social, como prescreve seu artigo 1º, inderrogáveis por normas de natureza essencialmente dispositiva, como são as da lei de arbitragem, na parte em que tratam de sua instituição, que é, repetimos, opcional;
c) mesmo houvesse dúvida quanto a esta interpretação, o que dizemos para argumentar, prevaleceria o princípio pro consumatore, vale dizer, a interpretação favorável ao consumidor por serem seus interesses objeto de especial proteção constitucional, constitutiva de direito fundamental. Resta acrescentar que a exigência do artigo 4o, parágrafo 2o, da lei de arbitragem, de que a validade da cláusula compromissória em contratos de adesão depende da concordância expressa do consumidor aderente, é uma aparência de proteção. De fato, nesses contratos de adesão os consumidores não gozam de liberdade de contratar, estando obrigados a aceitar as cláusulas impostas pelo proponente se quiserem obter o bem ou serviço de que necessitam, como mostramos acima. Daí a inutilidade de tal exigência como mecanismo de defesa da parte débil. Segundo caso: Artigo 8º, parágrafo único. Este dispositivo da lei de arbitragem atribui competência ao árbitro para decidir sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha cláusula compromissória. Tal preceito afigura-se-nos inconstitucional pelas seguintes razões:
a) a matéria sobre a existência, validade e eficácia dos contratos em geral é de ordem pública, portanto, indisponível. Ora, a jurisdição do árbitro é para decidir sobre direitos patrimoniais disponíveis. Por conseqüência, falta-lhe jurisdição para pronunciar-se sobre esta matéria;
b) contra a decisão do árbitro sobre dita matéria não cabe recurso ao Judiciário, o que fere a garantia constitucional da ampla defesa. Não modifica essa conclusão o fato de a parte vencida poder pedir, ao final, a anulação do laudo, pois sujeita a parte ao gravame de ter de esperar a extinção do procedimento arbitral para só então poder propor ação com rito comum, o que é incompatível com a garantia da ampla defesa que inclui necessariamente a possibilidade de impugnar imediata e eficazmente o ato lesivo da autoridade. Terceiro caso: Artigo 15, parágrafo 2º. O dispositivo dá ao árbitro o poder de julgar as alegações das partes sobre sua própria suspeição. A inconstitucionalidade do preceito parece-nos flagrante por três motivos básicos:
a) viola o princípio universal da imparcialidade objetiva e subjetiva do julgador, expresso na máxima, "ninguém pode ser juiz em causa própria", garantia fundamental das partes assegurada na Constituição;
b) viola também a garantia constitucional da ampla defesa, pois da decisão não há recurso e a ação ordinária que a parte possa propor, ao final, para anular o laudo não satisfaz os requisitos da garantia da ampla defesa, como afirmamos no parágrafo anterior;
c) finalmente, viola a jurisdição do juízo arbitral, restrita a direitos patrimoniais disponíveis, ao passo que suspeição e impedimento do árbitro são matérias de ordem pública, portanto, de natureza indisponível, como tal, fora da jurisdição do juízo arbitral.

Bibliografia: ARRUDA JÚnior, Edmundo Lima de. Direito e século XXI (conflito e ordem na onda neoliberal pós-moderna), Niterói, luam Editora, 1997; AZZARITI, Gaetano e outros, "il potere dei giudici", Roma, manifestolibri, 1994. FARIA, José Eduardo, e outros. Direito e globalização econômica. S. Paulo, Malheiros Editores, 1996. FERRARI, Vincenzo. Funzioni del diritto. Roma, Iaterza, 2ª edizione, 1989. GOZAINE, Osvaldo A. Formas alternativas para la resolucion de conflitos. Buenos Aires, Depalma, 1995. GUYON, Yves. l`arbitraje. Paris, Economica, 1995. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. S. Paulo, Malheiros Editores, 2a edição, 1996. MARTINEZ, José Maria Roca. Arbitraje e instituciones arbitrales. Barcelona, Bosch Editor, 1992. MURRAY, John S. e outros. Processes of dispute resolution: the role of lawyers. New York, the Fundation Press, inc. 1996. NOONE, Michel. Mediation. London, Cavendish Publishing Limited, 1996. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e economia. S. Paulo, Editora Ática, 1995. RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual brasileiro. S. Paulo, Editora Acadêmica, 1994. ROGERS, Goldberg Sander. Dispute resolution. London, Little Brown And Company, second edition, 1992. SIX, Jean-François. Les temps des mediateurs. Paris, Seuil, 1990. SMITH, Roger. Achieving civil justice. London, Lag, 1996. TRIBE, Diana. Negotiation. London, Cavendish Publishing Limited, 1993.

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