ASPECTOS DO INSTITUTO DA ARBITRAGEM*

Demócrito Ramos Reinaldo Filho 
Juiz de Direito em PE e Professor da ESMAPE

A Lei 9.307, de 23.09.96, que se tornou conhecida como "Lei Marco Maciel", vem a lume como fruto de um esforço tendente a revitalizar o instituto do juízo arbitral. De inspiração nitidamente privatística, aparece justamente no momento histórico em que as relações comerciais rompem de uma maneira nunca dantes vista as fronteiras territoriais dos países, fazendo aparecer o fenômeno que se convencionou chamar de "globalização da economia". Embalada pelo avanço tecnológico, a economia se superdimensiona, oportunizando a que empresas de qualquer parte do mundo possam realizar investimentos e auferir lucros nos mais diversos países, cujas economias estão integradas pelos laços da rede mundial de comunicação, tendo como centro desse novo império e como poder hegemônico os Estados Unidos da América.

Essa circunstância cronológica, de coincidência da edição do novel texto de lei com esse momento ímpar porque passa o cenário econômico mundial, tem levado alguns a profligarem-na com a invectiva de que não atende aos anseios do povo, mas a "ideologias do neoliberalismo capitalista".

Não é de hoje que se tenta reformular a figura do juízo arbitral. Somente na última década foram apresentados três anteprojetos no intuito de aperfeiçoar o instituto. É forçoso reconhecer, no entanto, que com o fenômeno da "globalização da economia" ou depois da formação dos blocos econômicos (União Européia, Nafta, Mercosul, etc.) cresceu nos meios jurídicos o interesse pela arbitragem, crescimento esse que foi gerado pelo empenho das multinacionais e grandes empresas em criar um ambiente propício para modificar a legislação brasileira, com o fim de possibilitar o desenvolvimento da arbitragem. A economia mundial se expandiu de tal forma que as fronteiras nacionais passaram a ser um obstáculo para a desenvolução do comércio internacional. Foram unificadas tarifas alfandegárias, tributos internos, regimes de competição entre empresas, tudo isso em prol da economia globalizada, para remover todos os empeços à expansão do capital . Não causaria surpresa a ninguém que a Justiça não ficasse indene a esse processo avassalador. A arbitragem despontou como uma solução viável para compatibilizar os interesses multinacionais em foros nacionalizados, como uma opção não-estatal para a solução de conflitos entre pessoas de países diferentes. Inegavelmente esse quadro político e econômico, de profundas transformações, serviu como pano de fundo para apressar a reforma legislativa que sobreviria com a edição da Lei 9.307/96.

Sem a disposição de ensejar um debate ideológico, sobre atender ou não às exigências do pensamento neoliberal, pensamos que a nova lei procura adequar nossa ordem jurídica interna à realidade da sociedade moderna, onde as relações econômicas, globalizadas, favorecidas pela rede mundial de comunicação, se dão num ritmo frenético, aumentando vertiginosamente a produção e distribuição dos bens de consumo de forma ainda mais dinâmica do que a proporcionada pela "revolução industrial", surgindo daí a necessidade de aperfeiçoamento e melhoria dos mecanismos de distribuição de justiça - demasiadamente carregados pela pletora de demandas decorrentes desse processo - através da formulação de novas técnicas e métodos alternativos de solução das controvérsias, dos quais a arbitragem vem servir como o mais lídimo, avançado e renovador exemplo.

Pode parecer que vivenciamos, na realidade, uma involução no processo de controle e exercício da jurisdição, porquanto sabemos que originariamente o Estado não detinha o monopólio da função jurisdicional, sendo comum em épocas mais remotas de as partes, de forma livre e soberana, valerem-se de árbitros para solucionar suas pendências. Na verdade, o que estamos captando em profundidade é a "busca da identidade perdida", porquanto a idéia concebida na atualidade de que a função jurisdicional, na sua inteireza, deve ficar sob a responsabilidade do Estado, não frutificou como uma natural evolução desse processo, mas surgiu a partir do momento em que o Estado apoderou-se exclusivamente da função jurisdicional com a intenção de "exercer um maior controle sobre o jurisdicionado e de suprimir outras jurisdições comunitárias", que pudessem naturalmente surgir da liberdade dos particulares de resolverem suas pendências, na órbita privada, com o auxílio de árbitros. Encontra suas raízes no momento histórico em que o Estado romano, fortalecido nas batalhas militares e, receoso de "perder o controle das massas populares, num ambiente territorial em constante expansão, investiu-se da capacidade de exercer a função jurisdicional em sua plenitude (cível e criminal), monopolizando-a".

O fato é que, no momento atual, as conseqüências desse intervencionismo estatal nos assuntos, antes, da alçada exclusivamente privada, repercutem com maior intensidade, ficando à mostra os problemas introduzidos na distribuição da Justiça por força do monopólio estatal, tais como procedimentos complexos e obedientes a exigências formais, morosidade, estruturação de serventias arcaicas dotadas de um corpo de servidores desestimulados, aspectos negativos esses que, com toda a certeza, ficam agravados pelo fenômeno da formação dos blocos econômicos, expondo a obsolescência, o exaurimento e, porque não dizer, a falência do sistema . Hoje, mais do que nunca, fica à mostra o descompasso entre a burocracia estatal que emperra a prestação jurisdicional e as exigências da chamada sociedade pós-moderna, que caminha num ritmo desenvolvimentista alucinante.

Diante desse quadro, de impulso na velocidade das transformações sociais, parece-nos que não basta apenas aparelhar o Judiciário para dar conta dos conflitos decorrentes desse processo. O Judiciário teria que se modernizar numa rapidez muitas vezes superior a que a programação das verbas orçamentárias permite. Para acompanhar as novas exigências sociais, todas as medidas tomadas até agora não têm sido suficientes. A criação de juizados especiais e a reforma do processo, embora tenham representado medidas ousadas e inovadoras, ficaram a passos largos do desejado atendimento e solução em tempo razoável de processos que dão entrada nos diversos órgãos judiciários. Nos últimos tempos, as estatísticas têm comprovado que, a cada dia, cresce a quantidade dos feitos que entram no Judiciário em comparação com os que são julgados.

Há alguns anos atrás, era unânime o pensamento de que o atraso no julgamento dos processos devia-se exclusivamente ao reduzido número de juízes. Essa constatação simplista do processo parece estar comprovadamente ultrapassada. Somente no nosso Estado (Pernambuco), quase que foi quadruplicado o número de juízes num espaço de poucos anos, sem que a sociedade tenha sentido nenhum resultado positivo desse aumento nos quadros da magistratura local. Pelo contrário, as queixas contra a lentidão da Justiça só aumentaram. Muitos magistrados e profissionais do Direito estão convictos, agora, de que, como medida acessória, é indispensável uma reforma processual profunda, que venha a sumprimir recursos e formas protelatórias - a recente Reforma do Código de Processo Civil, sob a responsabilidade da Escola Nacional da Magistratura, não teria sido suficiente, pois não atacou esses pontos, não tendo surtido nenhuma repercussão em termos de agilização processual.

Concordamos que, realmente, afigura-se imperiosa uma reforma processual mais "radical". Uma das principais causas de estrangulamento da prestação jurisdicional consiste no exagerado formalismo do nosso sistema processual, rico em recursos e procedimentos complexos, o que favorece, na prática, a "eternização" das demandas em juízo. Qualquer proposta tendente a reformular a sistemática processual teria que, a nosso ver, estar voltada para um único objetivo: a supressão de instâncias e o estreitamento das vias recursais. Figurando o exagerado número de formas recursais existentes na linha de topo dos fatores de postergação do andamento dos processos, poderia a lei, desde que respeitado o duplo grau de jurisdição, por exemplo, definir decisões irrecorríveis, condicionar a interposicão de recursos a depósito prévio de valor variável (dependendo das hipóteses e de acordo com a hierarquia da instância julgadora) e frear a interposição de recursos para tribunais superiores, nas causas em que o direito das partes se fundasse unicamente em legislação "local".

Mas, mesmo sobrevindo uma reforma processual que atenda a esse propósito, inclusive com alterações de ordem constitucional - imprescindível para uma reforma no sistema recursal de grande extensão -, estamos convictos que, mesmo assim, a prestação jurisdicional de forma ampla, em todas as hipóteses evolvendo questões patrimoniais privadas, tende sempre a ser um serviço com padrão de qualidade de baixo nível, porque continuariam a existir todas as mazelas próprias do serviço público. Todos os burocratismos e entraves por eles criados continuariam a existir. A vitaliciedade dos juízes e estabilidade dos servidores, a falta de estímulos, a baixa remuneração, a ausência de programas de treinamento e especialização, todos esses fatores que levam à baixa produtividade, aliados a outros, como o interesse de certos advogados de que essa situação perdure, formam um círculo vicioso e difícil de corrigir, prejudicando a distribuição da Justiça e refletindo em último caso como fator de desagregação social.

Daí porque o Estado deve urgentemente voltar-se para formas alternativas de prestação de Justiça. Não podemos fugir ao processo de pensar a melhoria da prestação jurisdicional, mesmo que isso implique na adoção de propostas que importe em abalar estruturas que antes estavam incólumes a qualquer tipo de revisão. É natural, por outro lado, uma certa hesitação em implantar o novo, em aceitar inovações que fujam ao esquema de poder preestabelecido e sedimentado na sociedade, mas essas resistências têm que ser removidas em prol dos avanços sociais. Nesse sentido parecem evidentes as melhorias que a arbitragem pode trazer como técnica de solução de conflitos. É de entendimento de expressiva corrente da doutrina que, dentre outras vantagens, que justificam a opção das partes pelo procedimento arbitral, preterindo a forma de jurisdição estatal, encontram-se em primeiro plano: a) a celeridade, como decorrência da simplificação do procedimento e extinção de formas processuais solenes; b) o sigilo, evitando que se exponham fatos e documentos que, pela sua natureza, possam ensejar influências externas que prejudiquem a isenção de ânimos na composição do litígio, diferentemente dos processos que são julgados em sede judicial, onde a regra geral é a da publicidade dos atos processuais, não aplicável somente aos casos previstos em lei; c) o não cabimento de recurso das decisões arbitrais, o que repercute no resultado imediato da decisão, ao contrário do que ocorre na sentença judicial; e d) como diferencial vantagem entre um sistema e outro, a liberdade das partes na escolha da pessoa habilitada para julgar a causa (o árbitro), o que confere a neutralidade do julgador escolhido e, por conseguinte, uma maior segurança quanto à sua imparcialidade, podendo se acrescentar ainda a circunstância de que, sendo o árbitro por vezes detentor de conhecimentos especializados, traz à decisão uma maior precisão técnica.

A tentativa do resgate da arbitragem atende, portanto, a uma necessidade de se oferecer uma via alternativa ao jurisdicionado, que se pode revelar mais adequada para a solução de litígios de natureza patrimonial privada, reservando-se ao Judiciário a competência para processar e julgar as lides que envolvam direitos e interesses indisponíveis, de cunho social, político ou institucional, em que o controle da legalidade deva ser exercido como exigência do interesse coletivo. Com efeito, o compromisso arbitral não pode versar sobre direitos indisponíveis como, v. g., questões de família, de falência, de incapazes e outras que exigem procedimento com a participação obrigatória do Ministério Público, bem como não pode abranger questões que se submetam aos procedimentos de jurisdição voluntária, dada a natureza pública que existe em todos esses procedimentos.

A função do controle da legalidade é eminentemente estatal e constituiu a própria razão da existência do Poder Judiciário. Inúmeras ações que constituem o sistema de controle da legalidade, e que portanto não podem ser levadas ao âmbito do juízo arbitral, podem ser identificadas. O mandado de segurança, a ação popular, o "habeas corpus", o "habeas data", o mandado de injunção, a ação civil pública, dentre outras, não poderiam ter foro mais apropriado do que o Judiciário, porque, como garantias do cidadão e integrantes do sistema de controle da legalidade, devem ser processadas no órgão independente funcionalmente e com atribuições de equilíbrio e proteção da ordem jurídica.

A indispensabilidade da atuação do Judiciário não somente se revela na correção de condutas administrativas, mas dentro de um espectro bastante amplo de atos jurídicos que surtam repercussão, malferindo direitos e interesses coletivos. Por exemplo, no processamento de ações coletivas em defesa dos direitos dos consumidores ou visando a proteção ambiental. Nesses casos, ninguém está melhor aparelhado do que o Estado para, usando do seu poder de coação, intervir preventivamente ou de forma corretiva em favor da sociedade, determinando a cessação de atividade empresarial nociva ou mandando retirar produtos periculosos do mercado, só para exemplificar algumas situações em que a jurisdição arbitral não se mostra adequada a atender aspirações sociais. A jurisdição criminal, da mesma forma, não pode ser entregue ao juízo arbitral, por revestir-se de elevado interesse público.

No sentido, portanto, de oferecer uma alternativa ao jurisdicionado na solução de conflitos patrimoniais privados, caminhou o editor da Lei 9.307/96, procurando corrigir o principal ponto de enfraquecimento e desuso do juízo arbitral - a necessidade da homologação do laudo por sentença de juiz togado. Nos moldes em que estava desenhado no Código de Processo Civil, tornou-se um instituto sem maior incidência na prática e sem o prestígio internacional da arbitragem, justamente em função da circunstância de que era ordenado e vigiado pelo Estado, havendo sempre a necessidade de um pronunciamento judicial (sentença homologatória) para que o laudo arbitral adquirisse a qualidade de título executivo judicial. Agora tal exigência é dispensável, pois nos termos do art. 31 da Lei especial "a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo".

Essa substancial alteração na figura do juízo arbitral, no entanto, reacendeu antiga discussão sobre a constitucionalidade do instituto. Novamente, aqueles sempre contrários à implementação de qualquer modelo alternativo de composição de conflitos intersubjetivos, voltam suas baterias contra o juízo arbitral, reanimados pela inovação introduzida - de que a sentença que o árbitro proferir não fica sujeita a recurso ou homologação pelo Poder Judiciário (art. 18 da Lei 9.307/96), adquirindo força e autoridade de coisa julgada material, passível de execução como título executivo de natureza judicial, em sendo condenatória. Argumentam que essa circunstância termina por ferir definitivamente vários direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal, dentre eles o princípio de que "A Lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5o., inc. XXXV).

Somos dos que pensam ser juridicamente possível a quebra do monopólio estatal da prestação jurisdicional sem que haja, em contrapartida, desrespeito ao princípio do controle judicial dos atos ameaçadores ou lesionadores de direitos. Diga-se, a propósito, que um genuíno monopólio estatal na entrega da prestação jurisdicional nunca existiu, na esfera da legislação pátria. O Juízo arbitral, mesmo nos moldes em que antes estava delineado no corpo do CPC, já configurava uma espécie de justiça privada, porquanto por meio dele as partes excluíam da cognição judicial a lide existente entre elas. Além disso, o nosso sistema jurídico admite a transação, figura jurídica que se aproxima do juízo arbitral, como meio legal posto à disposição dos contendores para a solução de suas pendências, a qual produz o efeito de coisa julgada (art. 1.030 do C.C.), somente admitindo rescisão em casos de dolo, violência ou erro essencial quanto à pessoa ou coisa controversa.

Com a celebração da convenção de arbitragem, as partes apenas transferem, deslocam a jurisdição para um destinatário privado. O ato de escolha de um árbitro para solucionar-lhes a pendência não significa renúncia ao direito de ação, mas antes um livre ajuste na forma pela qual se comprometem a pôr fim a uma lide envolvendo direitos disponíveis. E reside justamente nessa circunstância - a de que a convenção de arbitragem só pode versar sobre direitos disponíveis - a legitimação para agirem dessa maneira. Como a convenção de arbitragem só pode versar sobre matéria de direito disponível, é lícito às partes assim procederem. Ora, se a convenção entre particulares é a causa principal geradora de direitos e obrigações na ordem jurídica privada, parece mesmo lógico que possam também utilizá-la para resolvê-los ou extingui-los. Se o titular de um direito disponível pode renunciá-lo, porque não, então, admitir-se possa ele escolher a forma de solver controvérsia em torno desse mesmo direito? Por essa razão é que entendemos que a instituição do juízo arbitral, mesmo com a dispensa da homologação por juiz togado da decisão do árbitro, não constitui ofensa a qualquer princípio constitucional. Não se nega o acesso do cidadão ao Judiciário, apenas permite que ele, o próprio titular do direito material, decida sobre a forma de solucionar a questão em torno desse direito (disponível), se por meio da jurisdição estatal, oferecida pelos órgãos judiciários, ou se através de uma jurisdição alternativa, privada, em que pessoas escolhidas por ele próprio (os árbitros), e que portanto gozam de sua confiança, apresentem a solução para um caso a que estão mais habilitadas a resolverem por força de seus conhecimentos especializados. Sempre que houver lesão ou ameaça de direito patrimonial e a parte afetada não aceitar a arbitragem, restará em todos os casos aberta a possibilidade de se requerer a tutela estatal, ou seja, de acionar o Judiciário.

O problema, como se vê, consiste no entendimento do que seja jurisdição, que deve ser vista não como um atributo exclusivamente conferido ao Estado, mas também a outras pessoas eleitas pelos interessados para, em casos concretos, comporem conflitos intersubjetivos, resolvendo-os de acordo com a lei, os costumes, a jurisprudência, os princípios gerais do direito e a eqüidade. Nesse sentido vem a calho o ensinamento de Nelson Nery Júnior, para quem a instituição do juízo arbitral não ofende o inc. XXXV do art. 5o., da CF, justamente porque a prestação da jurisdição não é atributo exclusivo do Estado, ao prelecionar:

"Não se pode tolerar, por flagrante inconstitucionalidade, a exclusão, pela lei, da apreciação de lesão a direito pelo Poder Judiciário, que não é o caso do juízo arbitral. O que se exclui pelo compromisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Não se poderá ir à justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral. Em ambas há, por óbvio, a atividade jurisdicional".

Tal pronunciamento conforta em muito a corrente doutrinária que atribui à arbitragem natureza jurisdicional. E essa corrente, realmente, parece coberta de razão, na medida em que se observa que os árbitros são escolhidos pelas partes, mas é da lei - à semelhança do que acontece com o juiz togado - que deriva o seu poder de julgar.

Para reforçar a tese da inconstitucionalidade da Lei 9.307/96, sustenta-se ainda que o juízo arbitral ofende o princípio da "ampla defesa, formalmente asseguradora do due process of law" (CF, art. 5o., LIV e LV).

Não podemos concordar com tal posicionamento.

O instituto do juízo arbitral tem na simplificação do procedimento uma de suas notas marcantes, porque, como se sabe, é da simplificação dos ritos que decorre a celeridade, esta apresentando-se como uma das principais vantagens sobre o processo judicial. Utilizando-se somente o indispensável, garante-se a praticidade e, conseqüentemente, a brevidade, sem se sacrificar qualquer direito das partes. Com efeito, conquanto não se preveja uma ampla "liturgia" para os atos a serem providos sob o comando do árbitro, é imprescindível que observe o princípio do contraditório, organizando a atividade instrutória em atenção ao "due process of law", como mínimo que se exige para a manutenção do equilíbrio no tratamento das partes. Mesmo sem formas predeterminadas, a que estaria subordinado o cumprimento dos atos e trâmites do processo, a partir da instauração do juízo arbitral, não se pode dispensar o tratamento equânime das partes, na produção de atos instrutórios e defesa de seus respectivos interesses. O processo de arbitragem, qualquer que seja sua moldura, encontra na observância ao princípio do contraditório o requisito mínimo a que está condicionada a atividade do árbitro. Nesse sentido a legislação especial (Lei 9.307/96) é bem clara quando predispõe, no parágrafo 2o. do art. 21, que "serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório" e "da igualdade das partes".

Ainda como empecilho de ordem constitucional à sobrevivência da "Lei Marco Maciel", argumentam os seus opositores que ela atenta também contra o "princípio do juiz natural".

O princípio do juiz natural, como se sabe, tem a ver com a garantia do jurisdicionado que sua causa seja processada perante o juiz cuja competência decorra das leis processuais. Como, em nosso sistema normativo, a própria Constituição distribui entre os diversos órgãos judiciários as atribuições jurisdicionais, delineando em primeiro plano as diferentes competências, diz-se que o princípio em questão tem fonte constitucional. Fundamentados nessa observação, alegam aqueles que estão em posição contrária à Lei 9.307/96, que "a lei ordinária não pode, por si só, modificar a jurisdição conferida a juízes e Tribunais".

De nossa parte, consideramos equivocado tal ponto de vista.

O que a Constituição faz é distribuir a competência entre os diversos órgãos judiciários, ou seja, reparte a competência derivada da jurisdição estatal, cuja distribuição fica a cargo desses órgãos, dependendo da natureza de cada demanda. O princípio do juiz natural, assim, tem a ver com a jurisdição estatal. Em outras palavras, é impostergável quando se trata de causa submetida à jurisdição estatal. Tem aplicação quando o litígio vem a ter curso na esfera da jurisdição estatal. Optando por requerer a tutela jurisdicional conferida pelo Estado, a parte não pode escolher o juízo por onde correrá o processo, mas submeter-se às regras definidoras de competência, as quais indicam o órgão judiciário com poderes para o julgamento da causa. O poder de julgar nesse caso é exercido em nome do Estado, como expressão de sua soberania. Quando se desenvolve atividade estatal, a ninguém é dado a faculdade de exercer funções cometidas com exclusividade ao órgão competente segundo as normas de ordem pública.

Quando, por outro lado, as partes optam por resolver a pendenga em sede do juízo arbitral, nessa hipótese a solução não requer a atuação do corpo estatal, do Estado-Juiz. As partes resolvem seus interesses (disponíveis) na órbita privada de seus negócios, não havendo que se falar em ajustamento ao "princípio do juiz natural". A jurisdição estatal não é provocada para dar uma solução ao caso. A solvência, ao contrário, resulta da livre autonomia das partes, por meio da escolha de um intermediário que resolve a contenda.

É indispensável a observação de que, a despeito da alteração trazida com a dispensa de homologação da decisão arbitral, a Lei 9.307/96 optou por escolher o caminho da manutenção do modelo atual, deixando a arbitragem como opção convencional e subsidiária de jurisdição, daí porque somente foram necessárias mudanças na legislação que trata do juízo arbitral (legislação infraconstitucional - Código Civil e Código de Processo Civil). Não houve invasão da esfera de atuação do Judiciário, cujos diversos órgãos, singulares ou colegiados, da Justiça Comum ou das Justiças especializadas, continuam com a mesma competência. Se, por acaso, a opção política tivesse sido diversa, no sentido de transferir parte do poder jurisdicional estatal ao juízo arbitral, extirpando-se parcela da competência dos órgãos judiciários e restringindo sua atuação àquelas causas em que, pela sua natureza, não pudessem ser resolvidas no juízo privado, aí sim seria necessária uma alteração na própria Constituição, sob pena de restar malferidos vários princípios de cepa constitucional, entre eles o do juiz natural e aquele que impede a criação de juízo ou tribunal de exceção (art. 5o., inc. XXXVII).

A Lei 9.307/96 não apenas resolveu questão crucial acerca da (des)necessidade de homologação do laudo, como também enfrentou outro problema decisivo referente à arbitragem - o concernente à cláusula compromissória.

A cláusula compromissória (pactum de compromittendo), como se sabe, cria apenas obrigação de fazer, caracterizando-se como pacto preliminar cujo objeto é a realização do compromisso arbitral futuro. Antes do advento da "Lei Marco Maciel", muitos sustentavam que a inserção dessa cláusula em um contrato não produzia qualquer eficácia, à falta de previsão em norma positivada, porquanto na sistemática de então somente se permitia a instituição do compromisso arbitral depois de criada a lide (art. 1.039, do C.C., e art. 1.074, III, do CPC, ambos hoje revogados).

A nova lei traz várias disposições específicas sobre a cláusula compromissória (arts. 3o. a 8o.), desde seu conceito legal (art. 4o., "caput"), passando pela forma como deve ser estipulada (art. 4o., par. 1o.), inclusive nos contratos de adesão (art. 4o., par. 2o.), bem como sobre a possibilidade de conter referência a regras de órgão arbitral institucional ou entidade especializada (art. 5o.), procedimento de comunicação para uma parte manifestar à outra sua intenção de dar início à arbitragem (art. 6o.), procedimento da ação para cumprimento específico da obrigação assumida em cláusula compromissória (art. 7o.) e a sua natureza autônoma (art. 8o.).

Um dos aspectos da cláusula compromissória que podem, a nosso ver, dar margem a discussões reside na admissibilidade de sua inclusão em contratos de adesão. O par. 2o. do art. 4o., da lei em análise, prevê expressamente essa possibilidade, nos seguintes termos:

"Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula".

Temos a considerar que, a despeito da norma exigir todos os cuidados para que se dê ao aderente um perfeito conhecimento da obrigação que está assumindo, ao anuir com a cláusula compromissória, os juízes serão levados a reconhecer, diante de certas circunstâncias, a conseqüência jurídica imputável às cláusula abusivas - a nulidade - quando a convenção de arbitragem exsurgir como cláusula de um contrato de adesão.

Na jurisdição arbitral importa, acima de tudo, a vontade bilateral das partes de se submeterem à sentença do árbitro. O elemento volitivo aparece como condição de validade para a instituição da convenção de arbitragem, daí a necessidade de se proteger, como em qualquer outro negócio jurídico, a livre manifestação da vontade, a qual, uma vez viciada, torna o ato passível de nulidade. Nos contratos de adesão, conforme já identificado pela doutrina, não existe uma efetiva liberdade contratual por parte do aderente, pois suas "cláusulas são preestabelecidas unilateralmente pelo parceiro contratual economicamente mais forte (fornecedor), ne varietur, isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa discutir ou modificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito". Caracterizando-se, o contrato de adesão, fundamentalmente pela nota da pré-elaboração unilateral das cláusulas contratuais, as quais não são efetivamente negociadas, não existindo uma fase pré-contratual para a discussão dos termos e condições do pacto de consumo, não se pode dizer que nesse tipo contratual exista uma plena harmonia e equilíbrio entre as partes. O consumidor simplesmente adere "à vontade manifestada pela empresa no instrumento contratual massificado", residindo tão-somente nessa ação, traduzida na simples adesão à oferta do proponente (fornecedor), o modo de manifestação da sua aceitação, bastante para a formação do vínculo obrigacional (contratual).

Assim, a inclusão de cláusulas compromissórias em contratos de adesão poderá sofrer posterior contestação, porque no momento da formação do vínculo o aderente apresenta-se numa posição de inferioridade em relação ao fornecedor, que na maioria das vezes detém o monopólio da produção e distribuição do produto oferecido, sem qualquer possibilidade para o aderente de escolha efetiva do parceiro e das condições contratuais. Nessa situação, o consumidor vê-se muitas vezes obrigado a contratar e aceitar as cláusulas impostas pelo fornecedor. Sua esfera de decisão fica resumida a um take it or leave it, ou seja, pegar ou largar. Nesses casos, portanto, não é a circunstância de desconhecimento do teor das cláusulas que quebra a harmonia contratual, não é a falta de informação que gera o desequilíbrio, mas a posição de extrema inferioridade de uma parte em relação à outra, onde não há uma discussão paritária dos termos e condições contratuais.

Nessas hipóteses é perfeitamente aceitável a decretação de nulidade de cláusula compromissória, porque o que se observa é que, na prática, inexiste uma negociação quanto à escolha da jurisdição arbitral, mas uma verdadeira imposição dessa forma de solução de litígios, especialmente se o aderente for um não-profissional e hipossuficiente. Quando o juiz, diante do contexto do caso concreto, no quadro de circunstâncias considerado pelo direito, convencer-se que a cláusula compromissória, embora redigida como expressão da vontade das partes ou mesmo como resultado da "iniciativa" do consumidor, na prática representa o desequilíbrio contratual imanente ao contrato de adesão, pois na verdade deixa ao critério exclusivo e unilateral do fornecedor a escolha entre a jurisdição estatal e a jurisdição arbitral, pode perfeitamente fulminá-la com apoio no inc. VII do art. 51 da Lei 8.078/90 (CDC), que proíbe cláusulas que "determinem a utilização compulsória de arbitragem".

Configurada a abusividade decorrente desse contexto, de nada adianta que a cláusula compromissória apresente-se destacada das demais. Enquadrando-se no tipo da lista legal do art. 51 (inc. VII), não comporta qualquer possibilidade de convalescimento ou validação. Em nada aproveita a circunstância de que, na sua redação, o predisponente utilize caracteres de cor diferente das demais, ou com tarja preta, ou com corpo gráfico maior que as demais, ou com tipo de letra diferente, ou qualquer outra fórmula que possa ser empregada para chamar a atenção para a estipulação.

* Retirado de: http://www.infojus.com.br/area4/democritofilho2.html

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