A nova lei de arbitragem e os contratos de adesão
CARLOS ALBERTO ETCHEVERRY

Juiz de Direito em Porto Alegre. Titular do 3º e 4º Juizados Especiais Cíveis de Porto Alegre.

Foi publicada no Diário Oficial da União, em 24 de setembro deste ano, a Lei nº9.307, que regula o juízo arbitral.

Encontrando-se já em vigor, parece conveniente que, desde logo, sejam postos em discussão alguns aspectos que me parecem fadados a gerar polêmica. Refiro-me, especificamente, à possibilidade de inserção de cláusula compromissória em contratos de adesão, prevista no art. 4º, § 2º, da mencionada lei. Esta modalidade de contrato é utilizada em parcela significativa das relações de consumo; basta pensar nos contratos bancários, com suas inúmeras subespécies, e nos de locação, aos quais se aplicam analogicamente, sempre que a relação jurídica se forme pela adesão a condições negociais gerais, as disposições atinentes aos contratos de adesão contidas no Código de Defesa do Consumidor.

     1. A cláusula compromissória - conceito

É facultado às partes, em qualquer contrato, convencionar que os litígios que possam surgir relativamente ao mesmo sejam submetidos à arbitragem, conforme dispõe o art. 4º da Lei nº9.307/96, mediante a inserção, no instrumento negocial ou em apartado (§ 1º), de cláusula compromissória.

A cláusula compromissória, a par de documentar a vontade das partes de terem os litígios derivados do contrato resolvidos por arbitragem - ante litem, portanto -, pode estar acompanhada de disposições atinentes às regras relativas à instituíção e processamento da mesma (art. 5º). Faculta-se aos estipulantes que façam remissão, para tal fim, às regras "de algum órgão arbitral ou entidade especializada" (idem), à qual poderão delegar poderes para indicar o árbitro que irá dirimir o litígio - possibilidade que é explicitada no art. 10 da Lei nº9.307/96.

Entenda-se: regras formais, que disciplinam o processo de arbitragem, que compreende a sua instituição - precedida do comunicado da intenção de dar início à arbitragem -, o estabelecimento de data e local para a firmatura do compromisso arbitral e a regulamentação dos procedimentos a serem seguidos para decisão das questões incidentais e da controvérsia propriamente dita, comunicação dos atos etc.

Também poderá a cláusula compromissória dispor sobre a pessoa ou pessoas que atuarão como árbitros, como se infere da leitura do § 4º do art. 7º: "Se a cláusula compromissória nada dispuser sobre a nomeação de árbitros, caberá ao juiz, ouvidas as partes, estatuir a respeito, podendo nomear árbitro único para a solução do litígio."

A opção pelo direito aplicável ao caso ou pelo julgamento por eqüidade, facultados no art. 2º da Lei nº9.307/96, é matéria que deve ser objeto de acordo quando da celebração do compromisso arbitral, que "é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas (...)" (art. 10). Ou seja: ao firmarem a cláusula compromissória, os contratantes tem em mente a possibilidade de surgir, futuramente, um litígio. Deliberam, então, sobre a forma como será solucionado: pela justiça comum ou por arbitramento. Ocorrida a hipótese que deu origem ao pacto e estando de acordo quanto à pessoa que irá atuar como árbitro no caso concreto, celebram o compromisso a que se refere o art. 10 da lei sob exame. Apenas nesse momento, tendo conhecimento da exata extensão e da natureza do conflito, terão condições de decidir sobre o direito aplicável e a remuneração do árbitro, por exemplo.

Resumindo: a cláusula compromissória expressa a vontade das partes de terem os litígios decorrentes do contrato a que se refere submetidos ao juízo arbitral e pode conter, acessoriamente, apenas disposições relativas à escolha do árbitro e de normas procedimentais.

Essas conclusões, contudo, são válidas no tocante à contratos em que ambas as partes encontram-se em igualdade de condições, no que diz respeito à definição do conteúdo contratual. Tratando-se de contratos de adesão, o predisponente das condições negociais gerais não dispõe do poder de impor a cláusula compromissória, em face da inconstitucionalidade, sob este aspecto, da Lei nº9.307/96. É o que se verá a seguir.

            

2. Questão preliminar: da inconstitucionalidade do § 2º do art. 4º da Lei nº9.037/96

Dispõe a Constituição Federal, no capítulo que regula os direitos individuais e coletivos, que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5º, XXXV).

Entenda-se: não excluirá, por qualquer meio. Permitir a inserção de cláusula compromissória em contratos de adesão equivale a subtrair da apreciação do Poder Judiciário uma enorme quantidade de demandas. (É suficiente que se tenha em conta que a imensa maioria das relações de consumo é regulada por condições negociais gerais, cujo conteúdo é estabelecido pelo fornecedor, no seu próprio interesse.) E tudo isso por ato de vontade cru e imodificável de apenas um dos contratantes, situação que em nada se altera pelo fato de o aderente concordar expressamente em documento anexo ou dar seu visto à cláusula compromissória. Pensar o contrário é dar curso a uma ficção insustentável: imagine o leitor qual seria a resposta do gerente do banco a quem fosse proposta a abertura de um contrato de conta corrente sem a adesão ao pacto ora examinado.

A prevalecer a norma legal sob exame, demandas verificadas em setores inteiros da economia passariam a ser decididas por particulares destituídos das garantias da magistratura, sem a possibilidade de recurso e, o que é pior, com a forte possibilidade de comprometimento dos árbitros com os interesses das partes economica e politicamente mais fortes nos litígios, já que por elas teriam sido indicados. Quanto a este último aspecto, alguém poderia supor, em sã consciência, que o árbitro que se mostrasse avesso aos interesses do predisponente da cláusula compromissória continuaria sendo indicado ou manteria sua popularidade no meio empresarial?

A institucionalização da hegemonia do poder econômico resultante da faculdade instituída pela Lei nº9.307/96 é, como se vê, um preço demasiadamente alto a pagar pela celeridade na solução dos conflitos. O bem jurídico sacrificado - princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional - possui valor infinitamente maior do que a aludida celeridade. A paz social resultante da atuação de árbitros impostos por quem detém o poder econômico seria algo como a paz dos cemitérios, se comparada à que resulta da aplicação da justiça por juízes togados. Estes últimos, para assegurar sua isenção, dispõem das garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e da irredutibilidade dos seus vencimentos, que são fixados por lei e pagos pelo Estado, e não por um determinado empresário. Não são escolhidos e impostos, inapelavelmente, pela parte que tem interesse na solução do conflito: obtêm o acesso ao cargo por concurso público, sistema que, se não assegura a admissão dos melhores, pelo menos impede o acesso dos profissionais sem a qualificação mínima necessária.

A tentativa de revitalização do juízo arbitral empreendida pelo legislador atropelou um dos mais importantes princípios constitucionais e deu ensejo à substituição do direito estatal pelo direito das corporações. Nesse processo, foram atingidos, ainda, outros bens jurídicos protegidos pela Constituição: o direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa e o princípio do juiz natural.

Como de hábito, não se tocou nas verdadeiras raízes da morosidade da prestação jurisdicional. A par do muito que se poderia fazer pela simplificação das regras processuais, nenhuma iniciativa foi tomada no sentido de reduzir, por exemplo, a baixíssima relação de juízes por habitante, que é, no Brasil, de um para 26.400 habitantes, em flagrante contraste, para dar apenas um exemplo, com a Alemanha, onde o índice é de um para 3.000. Não bastando isto, observa-se a tendência de reduzir a participação do Poder Judiciário nos orçamentos estaduais e federal. Diante destes fatos, tudo indica que buscou-se, propositalmente, completar o processo de terceirização da justiça, já iniciado, bem mais recatadamente, com a criação dos Juizados Especiais Cíveis.

A invalidade da cláusula compromissória em contratos de adesão, contudo, é resultado a que se chega inclusive pela aplicação de regras de direito infraconstitucionais.

     

3. Cláusula compromissória em contratos de adesão

3.1. Contrato de adesão. Evolução histórica.

É crescente, nas legislações mais modernas, o reconhecimento de limitações à vontade das partes como fonte das obrigações. Essa tendência está radicada, resumidamente, na visão do direito como instrumento para a promoção das relações interindividuais com base na solidariedade e cooperação mútua, princípios incompatíveis com condutas ineqüitativas.

Como causa desse fenômeno poderia ser apontada a necessidade de introduzir um contrapeso ao modelo contratual resultante da produção e das trocas econômicas massificadas. Nesse contexto, surgiu como técnica contratual predominante, a pré-formulação do conteúdo dos contratos, como forma de agilizar o tráfico econômico, e até mesmo de viabilizá-lo, uma vez que, na prática, a negociação individualizada simplesmente não seria possível.

Essa modalidade de contrato, entretanto, faculta à contraparte apenas a adesão ou a recusa de contratar. A opção pela primeira alternativa implica aceitar um regime contratual que favorece apenas os interesses do predisponente. Nem sempre a última opção é possível, por outro lado, dada a necessidade de adquirir o bem jurídico que é objeto do contrato; além disso, o aderente provavelmente se veria colocado diante de condições negociais similares, caso buscasse contratar com outra pessoa.

Não há como falar, assim, em liberdade contratual. Ou, mais propriamente, em equivalência de poder de negociação. A par disso, a predisposição do conteúdo dos contratos tem como efeito, com a derrogação sistemática das regras de direito supletivas, a criação de uma ordem jurídica paralela à estatal, inteiramente despida da preocupação de conciliar os fins individuais e sociais.

Não tardaram a surgir, diante disso, legislações destinadas a coibir práticas abusivas - em geral inseridas no âmbito da defesa do consumidor, mas nem sempre: a AGB Gesetz alemã, de 1976, é aplicável a todos os contratos -, geralmente antecedidas por um período de sedimentação jurisprudencial, durante o qual os tribunais buscaram socorro em princípios gerais do direito, tais como a boa-fé objetiva e a ordem pública.

3.2. O contrato de adesão no Direito brasileiro.

A nova modalidade de contrato encontrou regulamentação pela primeira vez, no direito brasileiro, no Código de Defesa do Consumidor, que conceituou o contrato de adesão como sendo "cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo." A disciplina ali estabelecida, por evidente analogia, aplica-se às condições negociais gerais estabelecidas fora do âmbito do direito do consumidor.

A definição legal abrange, como se vê, tanto os contratos com o conteúdo pré-determinado pela administração pública, como é o caso dos de seguro, afetos à Superintendência dos Seguros Privados, como aqueles cujas cláusulas tenham sido estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor.

Está implícita na definição - e é o traço comum entre os contratos cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela "autoridade competente" e os demais - a pré-formulação das cláusulas, as condições negociais gerais, com vistas à sua aplicação futura nas relações com uma coletividade indeterminada, sem qualquer ligação com uma relação jurídica concreta.

É precisamente essa característica que denota a superioridade negocial do fornecedor. A determinação prévia do conteúdo contratual serve não apenas para otimizar sua atividade econômica, no tocante à eliminação do tempo que seria gasto com negociações individuais, como também à configuração do regime que lhe é mais favorável. Disso deriva o que se poderia chamar de rigidez contratual, ou seja, a virtual imodificabilidade do contrato na relação negocial concreta, pela sua natureza modelar.

É irrelevante, para a caracterização do tipo contratual, a autoria do seu texto, bastando que constitua a exteriorização da vontade do predisponente. Pouco importa que este tenha se servido de modelos elaborados por outros fornecedores ou por associações de classe.

Também podem ser enquadrados no conceito de contrato de adesão aqueles que tenham tido suas cláusulas estipuladas apenas pelo fornecedor, para o ato, tendo em vista um específico consumidor, uma vez que a lei, na segunda hipótese contida no art. 54, omite a presença da generalidade e abstração, que caracterizam as condições negociais gerais. É suficiente que sejam as cláusulas "estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo."

Estão compreendidos na definição, ainda, sob o aspecto formal, tanto os contratos em que se utilizam formulários como aqueles datilografados, manuscritos ou impressos por qualquer outro meio, contanto que baseados, estes últimos, em modelos de uso corrente pelo predisponente ou pela categoria econômica da qual faz parte e apresentados para aceitação em bloco ou rejeição. O fato de serem utilizados formulários, assim, apenas fornece uma evidência mais segura de que o intérprete se encontra diante de um contrato de adesão, não constituindo requisito para que seja qualificado como tal.

 

3.4. Inaplicabilidade da Lei nº9.307/96 aos contratos disciplinados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Em princípio, seria o caso de restringir o exame aos contratos de adesão que não tenham por objeto relação de consumo. Afinal, comina o CDC a pena de nulidade absoluta à cláusula que determine "a utilização compulsória de arbitragem" (art. 51, VI). Cumulativamente, o projeto que deu origem à Lei nº9.307/96 previa, expressamente, a revogação desse dispositivo legal, com a explícita intenção de generalizar a utilização da cláusula compromissória. Seria lícito imaginar - até mais do que isto -, recorrendo à mens legis, que remanesceria a vedação contida no CDC.

O fato, contudo, é que o estatuto legal mais recente, da forma como foi redigido o § 2º do art. 4º, não consagrou essa exceção, também aí se manifestando a mens legis. E como a antinomia tem lugar entre duas leis especiais, não faltarão os que concluam que a mais recente derrogou implicitamente a mais antiga. A estes se poderá objetar que a lei mais moderna, por abrir exceção ao monopólio estatal da justiça, deve ser interpretada restritivamente, só se podendo admitir que derrogou norma de ordem pública, contida em lei igualmente de ordem pública, se o tivesse feito expressamente, posição que é a mais correta.

Sendo possível que se travem infindáveis discussões sobre esta matéria, parece mais prudente, no exame que se segue, levar em conta a possibilidade de que venha a prevalecer a hipótese mais sinistra.

Além disso, estende-se o regime legal atinente às cláusulas abusivas nos contratos de consumo, geralmente inseridas em contratos de adesão, aos pactos sujeitos à disciplina do direito comum, que nada dispõe sobre o emprego de condições negociais gerais. A diferença de regimes em situações análogas "funda", por assim dizer, uma lacuna de direito no tocante aos últimos, autorizando o emprego da analogia para o seu preenchimento. Não poderia ser de outra forma: situações ou relações da mesma espécie, ou com o mesmo significado, devem receber o mesmo tratamento legal, em atendimento ao princípio da não-contradição axiológica.

 

3.5. A cláusula compromissória no contrato de adesão: limites dos poderes de predisposição do conteúdo contratual.

A eficácia da cláusula compromissória, em contratos de adesão, pressupõe a concordância expressa do aderente, em (a) documento apartado, ou, (b) encontrando-se a convenção no corpo do contrato e desde que esteja em negrito, com o lançamento de visto ou assinatura "especialmente para essa cláusula." (art. 4º, § 2º)

Estabelecendo essas condições, reconheceu o legislador que a concordância em submeter os litígios que versem sobre direitos disponíveis à arbitragem de particulares constitui uma limitação de direito, especificamente do direito de buscar a tutela do Poder Judiciário, daí resultando, já na partida, a inexistência do duplo grau de jurisdição (art. 18).

Mas não só isto. A leitura atenta da Lei nº9.307/96 permite encontrar outras limitações importantes:

a) a recusa do árbitro, por impedimento ou suspeição, é julgada pelo próprio excepto (art. 15). Desacolhida a exceção, somente poderá ser reexaminada se proposta a ação anulatória a que se refere o art. 33 da Lei nº9.307/96, ou em embargos do devedor (art. 33, § 3º);

b) com a possibilidade de julgamento por eqüidade (art. 2º, caput) ou de escolha do direito aplicável ao caso (art. 2º, §§ 1º e 2º), possibilitar-se-ia ao árbitro afastar a incidência de normas do direito positivo - excetuadas as de caráter imperativo - que, eventualmente, seriam mais favoráveis ao consumidor, em se tratando de relação de consumo, e mesmo quando não fosse este o caso;

c) o juízo arbitral é privado, embora a lei estabeleça que o árbitro, no exercício de suas funções, equipara-se ao funcionário público, para os efeitos da legislação penal (art. 17). Isto significa que os serviços por ele prestados, da mesma forma que as despesas feitas com a instrução, deverão ser custeadas pelas partes. Com isso, subtrai-se-lhes, por exemplo, a possibilidade de verem a demanda apreciada nos Juizados Especiais Cíveis, instituídos pela Lei nº9.099/95, cujo art. 54 institui a isenção de "custas, taxas ou despesas" em primeiro grau de jurisdição.

Tais conseqüências já não seriam desprezíveis na análise de contratos livremente negociados. A derrogação da competência judicial em contratos de adesão, somada à simultânea escolha do árbitro e de regras procedimentais, é alarmante e, pelo grau de desequilíbrio entre as partes que institui, com todas as conseqüências daí decorrentes, autoriza o enquadramento da cláusula compromissória entre aquelas que "estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade" (Código de Defesa do Consumidor, art. 51, IV).

Como já se viu, a característica essencial das condições negociais gerais é sua imodificabilidade. O aderente tem apenas duas opções: aceitá-las em bloco ou desistir da celebração do negócio jurídico. Não existe a possibilidade de negociação. A notoriedade dessa situação chega ao ponto de fazer com que praticamente ninguém leia na íntegra os contratos de adesão - quando isso é possível sem desconforto visual significativo, dada a reduzida dimensão das letras -, pois seria inútil. Apenas posteriormente, sobrevindo alguma vicissitude na relação negocial, as pessoas se dão conta da ineqüitatividade dos pactos que celebraram.

De qualquer forma, a adesão à cláusula compromissória quando sequer existe a perspectiva de um litígio encontraria o aderente com uma disposição de espírito que não lhe permite medir, devidamente, as graves conseqüências dos seus atos. Isso só seria possível se tivesse conhecimento do inteiro teor da Lei nº9.307/96, cuja compreensão já não é tarefa fácil para um profissional do direito.

Suponha-se, porém, que tenha plena consciência de que da sentença arbitral não caberá recurso; de que terá de concorrer para o custeio da instrução, quando poderia, por exemplo, apresentar sua pretensão perante os Juizados Cíveis Especiais, onde tal não ocorre; e de que a apreciação da demanda por um árbitro nomeado pela parte contrária não é exatamente uma garantia de imparcialidade. Ainda assim se curvará à imposição do predisponente das condições negociais gerais, pois será inútil pretender sua exclusão e, ademais, como é próprio da natureza humana, tenderá a ver como remota a possibilidade de um litígio.

Particularmente grave será o desequilíbrio entre as partes se na cláusula compromissória o estipulante já fizer a indicação de árbitro. A invalidade de tal convenção advém, já em primeira linha de raciocínio, do conflito com o princípio basilar contido no art. 13, caput, da Lei nº9.307/96: o árbitro deve gozar da confiança de ambas as partes. Inadmissível, por conseguinte, sua imposição por quem tem o poder de definir o conteúdo do contrato, sob pena de desatendimento do preceito contido na mencionada norma. A indicação de árbitro na própria cláusula compromissória, por conseguinte, só é possível quando resultante de tratativas realizadas entre partes com igual poder de negociação, condição que não se verifica nos contratos que se aperfeiçoam pela adesão a condições negociais gerais.

Ademais, é evidente que os critérios utilizados nessa indicação nada terão a ver com o objetivo de assegurar a apreciação serena e imparcial da lide: a confiança do predisponente estará estribada ou na certeza de que seus interesses serão privilegiados, ou na razoável esperança de que isso ocorrerá por outro motivo: que futuro teria, neste novo nicho mercadológico que é o da arbitragem, o profissional que se mostrasse, sob a ótica do empresariado, demasiadamente imparcial? Até de forma inconsciente o árbitro tenderia a ser parcial, como meio de assegurar a continuidade das indicações.

 

3.6. Conclusão

A desvantagem exagerada em que é colocado o aderente, como se demonstrou, traz como conseqüência a nulidade de pleno direito da cláusula compromissória, a teor do que dispõe o art. 51, caput, do Código de Defesa do Consumidor, analogicamente aplicável, como já se mencionou, aos contratos não sujeitos à disciplina do referido estatuto legal.

Tratando-se de nulidade absoluta, pode e deve o juiz decretá-la na primeira oportunidade em que dela tomar conhecimento, independentemente de provocação de qualquer das partes.

Tal obrigação decorre das disposições contidas no art. 145, V, combinado com o art. 146, § único, ambos do Código Civil:

"Art. 145. É nulo o ato jurídico:
...................................
"V - Quando a lei taxativamente o declarar nulo ou lhe negar efeito.
"Art. 146. (...)
"Parágrafo único. Devem [as nulidades do artigo antecedente] ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do ato ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda a requerimento das partes."

O momento mais adequado para a declaração da nulidade da cláusula compromissória, seja pela inconstitucionalidade, seja pela abusividade, será a audiência prévia para tentativa de conciliação e lavratura do termo de compromisso arbitral a que se refere o art. 7º da Lei nº9.307/96. Inexistindo a possibilidade de composição amigável e não tendo o aderente interesse na solução do litígio por arbitragem, cujas conseqüências deverão ser expostas previamente pelo juiz, deverá ser prolatada decisão declaratória da invalidade do pacto adjecto em questão, seguida da extinção do processo.

* Juiz de Direito, titular do 3º e 4º Juizados Especiais Cíveis de Porto Alegre

     

Notas

(1) Art. 4º. A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

§ 1º. A cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito, podendo estar inserta no próprio contrato ou em documento apartado que a ele se refira.
§ 2º. Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. 

 

(2) Art. 5º. Reportando-se as partes, na cláusula compromissória, às regras de algum órgão arbitral institucional ou entidade especializada, a arbitragem será instituída e processada de acordo com tais regras, podendo, igualmente, as partes estabelecer na própria cláusula, ou em outro documento, a forma convencionada para a instituição da arbitragem. 

 

(3) Art. 2 º. A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes.

§ 1º. Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública.
§ 2º. Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio. 

(4) Art. 10. Constará, obrigatoriamente, do compromisso arbitral:

I - o nome, profissão, estado civil e domicílio das partes;
II - o nome, profissão e domicílio do árbitro, ou dos árbitros, ou, se for o caso, a identificação da entidade à qual as partes delegaram a indicação de árbitros;
III - a matéria que será objeto da arbitragem; e
IV - o lugar em que será proferida a sentença arbitral. 

(5) Ver nota 9.

(6) Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. 

(7) Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

§ 1º. A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.
§ 2º. Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no par. 2o. do artigo anterior.
§ 3º. Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

§ 4º. As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. 

(8) Como ocorre com a utilização de formulários, nas locações celebradas por particulares, em caráter não-profissional. 

 

(9) Parece-me claro que não pode ser afastada a incidência de regras imperativas ou de ordem pública, como seriam, por exemplo, as que disciplinam a proteção contratual no Código de Defesa do Consumidor. Estando em discussão, por exemplo, a validade de obrigação contraída com o uso de cláusula-mandato, em hipótese alguma poderia o árbitro afastar a nulidade cominada no art. 51, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. De outra forma, estaria sendo criada uma forma oblíqua de contornar a regra contida no art. 146, par. único, do Código Civil, que veda ao juiz suprir as nulidades absolutas, ainda que a requerimento das partes. É entendimento, aliás, que encontra ressonância no art. 2º, § 2º, da Lei nº9.307, que permite às partes "escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública."

 

(10) Para não falar da assistência judiciária. Em que situação fica o litigante que não tem condições de arcar com as despesas do juízo arbitral sem prejuízo da própria subsistência ou de sua família?

 

(11) Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes.  

(12) A rigor, o primeiro momento seria quando do recebimento do pedido de designação de audiência. Contudo, é pouco razoável desperdiçar a oportunidade de tentar a conciliação. 

Voltar