Arbitragem e Processo 

Carlos Alberto Carmona
São Paulo: Malheiros, 1998.

É desnecessário apresentar o prof. CARMONA como o maior especialista brasileiro em arbitragem. Tanto que, com toda a justiça, foi um dos autores do anteprojeto que depois acabou convertido na Lei nº 9.307/96. Seus textos anteriores sobre o assunto – indispensáveis para os estudiosos do tema – reclamavam um trabalho posterior, atualizado conforme a nova norma. E de fato, aí temos seus comentários à referida Lei, precisos como sempre, e inigualavelmente úteis para os profissionais que lidam com o instituto.

É indiscutível a utilidade da obra, principalmente quando nela encontramos, aqui e ali, a abalizada posição do autor em inúmeros pontos polêmicos, posicionamento este que com certeza será estudado, citado e debatido nas controvérsias jurídicas que surgirem. Vejamos alguns desses pontos, a título de ilustração:

1) Arbitragem no Direito do Trabalho. Aqui o autor defende a aplicabilidade da Lei nº 9.307/96 aos conflitos trabalhistas, tanto individuais quanto coletivos (pp. 49-52). Desde a promulgação da Lei de Arbitragem, já há uma série de artigos de juslaboralistas, tanto contra quanto a favor dessa tese, de modo que estamos longe de assistir a uma pacificação doutrinária neste ponto.

2) Arbitragem nas relações de consumo. Como bem explica o autor, na redação original do anteprojeto, o art. 44 revogava o inc. VII do art. 51 do CDC, que afirma a abusividade (e conseqüente nulidade) de qualquer cláusula contratual que estabeleça a utilização compulsória da arbitragem em relação de consumo (p. 26). No entanto, com a retirada dessa revogação expressa, o autor entende – e lamenta – que a vedação do CDC continua em vigor, descartando qualquer tese no sentido de que houve revogação tácita (p. 325).

Mesmo entendendo que a vedação do CDC continua em vigor, defende a possibilidade de se cogitar a utilização da arbitragem para a solução de controvérsia entre fornecedor e consumidor, conquanto que pela via do compromisso arbitral, e não pela cláusula arbitral (pp. 56-7).

Nesse ponto, não há como discordar. Qualquer tese no sentido de que é possível, hoje, uma cláusula arbitral no contrato de relação de consumo, porque o inc. VII do art. 51 do CDC estaria revogado tacitamente, configuraria uma tentativa clara de convidar ao abuso contra os direitos do consumidor, o que é simplesmente inaceitável.

3) Arbitragem no contrato de adesão (Lei nº 9.307/96, art. 4º, § 2º). Para o autor, o que praticamente obriga a que se mantenha, hoje, a vigência do inc. VII do art. 51 do CDC é a redação dada pela Câmara dos Deputados ao art. 4º, § 2º, in fine, da Lei nº 9.307/96, que acaba desprotegendo o aderente com a prévia e expressa aceitação de cláusula arbitral (pp. 85-7). Em outras palavras, a Câmara teria cometido dois equívocos, sendo que um (art. 44 da Lei nº 9.307/96, que mantém em vigor o inc. VII do art. 51 do CDC), mitiga o outro (art. 4º, § 2º). O prof. CARMONA espera, contudo, que ambos os "equívocos" da Câmara dos Deputados sejam corrigidos, tornando-se à redação original desses dispositivos, conforme o anteprojeto (p. 325).

O exemplo dado de possível abuso em contrato de adesão é bastante esclarecedor:

"Não se admitiria, portanto, que um banco, por exemplo, ao celebrar contrato de abertura de crédito com seu cliente, introduzisse cláusula arbitral, eis que – presumiu o legislador – tal cláusula teria toda a possibilidade de ter sido imposta pelo contratante mais forte" (p. 57).

Na verdade, para certos tipos de contrato, nem é necessária a arbitragem, pois os bancos já têm a seu dispor as vias extrajudiciais para a execução de seus créditos (por exemplo, os leilões extrajudiciais do DL 21/66, DL 70/66 e Lei nº 9.541/97), ou outros privilégios processuais indisponíveis para o comum dos mortais (por exemplo, a venda antecipada dos bens penhorados na execução de cédula rural, a execução especial de cédula industrial, ou a busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária).

4) Tutela cautelar na arbitragem (Lei nº 9.307/96, art. 22, § 4º). Para o autor, que sempre defendeu a jurisdicionalidade da arbitragem, nada mais natural que a decisão da medida cautelar seja de competência exclusiva do árbitro, não precisando ele, para tanto, de poderes expressos na convenção arbitral (p. 216). A justificativa é a de que o árbitro não serve de substituto de parte junto ao Judiciário. Assim, mesmo não tendo poderes coercitivos, ele pode decretar a medida cautelar, que será "deprecada" mediante mero ofício ao juiz togado que seria competente para a causa, que a executará (pp. 215-6). Ao juiz caberia tão-somente uma prévia análise formal da regularidade da arbitragem, análoga à que ocorre na carta precatória (art. 209 do CPC), após a qual pode recusar cumprimento, devolvendo o ofício com as razões para tanto – a ausência de motivação daria ensejo a medidas correicionais (pp. 216-7).

A posição é polêmica, máxime em se considerando a redação do § 4º acima referido, pelo qual o árbitro poderá solicitar ao juiz togado a medida cautelar: "(...) havendo necessidade de medidas coercitivas ou cautelares, os árbitros poderão solicitá-las ao órgão do Poder Judiciário que seria, originariamente, competente para julgar a causa". É de todos sabido que há uma diferença semântica entre requerimento e requisição. A parte requer (pede, solicita) ao juiz, o juiz requisita (convoca, exige) a força policial. Como admite o autor, "o árbitro não tem poder de coerção" (p. 215). Logo, solicita, requer, pede; não requisita. A controvérsia está só começando.

5) Tutela antecipatória na arbitragem. Com base no mesmo § 4º do art. 22 (quando fala em "medidas coercitivas"), entende ser possível a tutela antecipatória na arbitragem também mediante decreto do árbitro e execução do juiz que seria competente para a causa (p. 218). Entende também que os requisitos do art. 273 do CPC podem ser seguidos, substituídos ou simplesmente ignorados, conforme dispuser a convenção de arbitragem (pp. 217-8). Percebe-se como o tópico está aberto a mais uma acalorada polêmica.

Nos dois últimos pontos que destacamos (tutela cautelar e antecipatória), a questão central do instituto, que é colocada na berlinda, é a sua jurisdicionalidade. Não é de hoje que o autor defende a tese de que a arbitragem é jurisdição (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e jurisdição. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (orgs.). Participação e processo. São Paulo: RT, 1988). Hoje, entende que essa tese foi adotada pela Lei nº 9.307/96, tanto que decisão arbitral faz coisa julgada e não pode haver compromisso arbitral cujo objeto seja relação jurídica já abrigada por coisa julgada (pp. 57-8). Prevê, no entanto, que "certamente surgirão críticas, especialmente de processualistas ortodoxos que não conseguem ver atividade processual – e muito menos jurisdicional – fora do âmbito da tutela estatal estrita", o que configuraria uma "idéia tacanha de jurisdição" (p. 38).

Comecemos com CHIOVENDA. Para o inigualável mestre italiano, não é a desnecessidade de homologação judicial do laudo arbitral (Lei 9.307/96, art. 31) que confere um suposto caráter jurisdicional à arbitragem: "(...) los árbitros no reciben de la ley ningún poder. (...) Puede existir una ley que no exija ni siquiera la sentencia o decreto de ejecutoriedad del laudo (...). Pero ni aun en esta ley el laudo y el arbitraje tendría carácter jurisdicional, a menos que los árbitros tuvieran los poderes jurisdiccionales" (CHIOVENDA, Giuseppe. Princípios de Derecho Procesal Civil. Madrid: Reus, 1922, t. 1, pp. 145-6).

Ninguém, em sã consciência, é favorável à ortodoxia com que determinados juristas se apegam às lições mais vetustas, por mais clássico que seja o paradigma adotado. Todavia, in casu, a lição chiovendiana, ou sua adoção, hoje, está longe de ser "tacanha", porque nos remete a um binômio sempre atual: o do poder e jurisdição (basta recordar DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 77 e ss.). E mais que isso, no trecho acima CHIOVENDA reafirma a inextrincabilidade desses dois elementos, qual seja: não há jurisdição sem poder.

O problema é que ao reconhecer, por um lado, que "o árbitro não tem poder de coerção" (p. 215), e por outro lado, defender uma adequação do conceito – "em crise já há muitos anos" – de jurisdição à realidade (p. 39), o prof. CARMONA praticamente nos obriga a retroceder a um conceito de jurisdição enquanto mera declaração. Em outras palavras, a adequação do conceito de jurisdição, para que incorpore uma figura (árbitro) sem poderes de coação, significa retirar da jurisdição qualquer noção de poder de império, o que nos remete ao Direito romano.

Recordemos a bipartição de funções entre o praetor e o iudex: enquanto o praetor (eleito pelo povo) dá ordens (ato volitivo), o iudex (escolhido pelas partes) declara direitos (ato intelectivo); enquanto o praetor exerce imperium, o iudex exerce jurisdição. Enquanto o sistema common law parece ter adaptado a figura do praetor, nos países que seguiram o sistema da Europa continental, o juiz se assemelha mais à figura do iudex, a princípio inclusive desvinculado da execução (de competência de funcionários administrativos) e de qualquer medida mandamental – tanto que LIEBMAN dizia que "não é função do juiz expedir ordens às partes, e sim unicamente declarar qual é a situação existente entre elas segundo o direito vigente" (LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução. 4ª ed., São Paulo: 1980, p. 15). Ver sobre o assunto SILVA, Ovídio Baptista da. Jurisdição e Execução. São Paulo: RT, 1996; MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do Processo Civil. São Paulo: RT, 1993. pp. 118-9.

Ainda antes da Revolução Francesa, no final do século XVI e início do século XVII, perpassou uma idéia de passividade na atuação judicial. Dizia Francis BACON, nessa época, em plena apologia do juiz passivo, que "os juízes devem lembrar-se de que o seu ofício é jus dicere e não jus dare" (BACON, Francis. Ensaios. Lisboa: Guimarães, 1952, p. 235 – grifos no original; ver também CHIOVENDA, Giuseppe. Princípios de Derecho Procesal Civil. Madrid: Reus, 1922, t. 1, p. 95). Com a Revolução Francesa, a dicotomia entre iuris dictio e a execução permaneceu em vigor, embora com outras tonalidades e por outros fundamentos (SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. vol I, Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 95; MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 158).

Tal noção persiste ainda em parte da doutrina, por exemplo, quando PAUL CUCHE e JEAN VINCENT afirmam que "la nature même de l’acte jurisdictionel conduit à poser qu’il doit avoir un caractère purement déclaratif; le juge dit le droit, se borne à reconnaître, à déclarer les droits mis en avant dans les prétentions des parties" (CUCHE, Paul; VINCENT, Jean. Procédure Civile et Commerciale. Paris: Dalloz, 1958, p. 67). Seria interessante até investigar se a separação estrita entre a atividade cognitiva/declarativa e a executiva não obedecem à lógica da separação entre o trabalho intelectual e o manual (SMITH, Adam. Riqueza das nações. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, v. 1, p. 78 e ss. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977, p. 44 e ss. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. 6ª ed., Rio de Janeiro: J. Olympio, 1971, pp. 50-6), mas fica isso para outra oportunidade.

Fato é que a "purificação" da atividade jurisdicional, com o expurgo de elementos executivos, é um libelo a favor da universalização do procedimento ordinário, em que estão proscritas quaisquer medidas coercitivas – que poderiam macular o nobre métier intelectivo/declaratório – e, conseqüentemente, depõe contra a efetividade do processo. É óbvio que não é essa a intenção da tese da jurisdicionalidade da arbitragem; só estamos especulando sobre pequenos detalhes relativos aos seus fundamentos. Pior é que, para escaparmos à vinculação entre a tese da jurisdicionalidade da arbitragem e a concepção "emasculada" de jurisdição, teríamos de conceber o árbitro com poderes coercitivos, o que com certeza amplia ainda mais a possibilidade de abusos por parte de grandes grupos econômicos, etc. A pergunta que se impõe nesse momento é a seguinte: se não há jurisdição sem poder (CHIOVENDA), um conceito mais adequado ao momento atual (CARMONA) admitiria que há jurisdição onde há poder... econômico?

A obra do prof. CARMONA não se atém aos dispositivos legais em si. Em determinado ponto, por exemplo, rebate as críticas de MIGUEL REALE e CLITO FORNACIARI JR. de que o anteprojeto e o projeto da Lei nº 9.307/96 não foram devidamente discutidos pelos meios jurídicos (p. 22). Para tanto, faz referência à chamada "Operação Arbiter", deflagrada pelo Instituto Liberal de Pernambuco no final de 1991, com o apoio da Fiesp e do então senador MARCO MACIEL (pp. 21-3).

Essa operação fez parte de um amplo programa de reformas legislativas promovido por agências internacionais, como a Usaid (agência americana de apoio ao desenvolvimento), BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e Banco Mundial (BACELLAR, Roberto Portugal. "Alerta sobre a reforma do Judiciário". Gazeta do Povo, Curitiba, 26 set. 1998, p. 6) – que aliás, juntamente com a Febraban, criticou diretamente a ineficiência do Judiciário brasileiro (PINTO, Luís Costa. "Lentidão preocupa ministro". Folha de S. Paulo, 3 nov. 1997, p. 1.10; THURY FILHO, Altair. "O preço da ação". Veja, São Paulo, 25 fev. 1998, p. 23). Essas agências internacionais promoveram investimentos em vários países no sentido de aprimorar a legislação da arbitragem, para possibilitar uma melhor inserção deles no processo de globalização da economia – eufemismo que traduz maior receptividade de seus ordenamentos à chegada das grandes corporações multinacionais em seus domínios (SANTOS, Boaventura de Sousa. "Os tribunais e a globalização". O Estado de S. Paulo, 9 nov. 1996. p. A2; BACELLAR, loc. cit.).

Não há nessa "globalização do processo" nenhuma novidade. Só para citarmos um exemplo: em 1918, em retribuição ao apoio brasileiro às nações aliadas na I Guerra Mundial, companhias inglesas fizeram uma excelente proposta de ampla renovação do arsenal bélico nacional, porém, com uma cláusula considerada "inaceitável" por NILO PEÇANHA, então Ministro das Relações Exteriores: jurisdição privilegiada (CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo: Ática, 1992, p. 195).

As instituições financeiras, descontentes com a morosidade do Judiciário brasileiro, sempre tiveram cacife político e lobby suficientes para lançar mão de instrumentos mais eficientes e adequados às suas necessidades, como a arbitragem. "In altre parole, le classi abienti non hanno bisogno di un processo ordinario funzionale ed efficiente, perché possono risolvere le loro questioni fuori dal processo (ad es., col ricorso alle procedure arbitrali)" (VERDE, Giovanni. Profili del Processo Civile: parte generale. 2ª ed., Napoli: Jovene, 1988, p. 8). Aliás, a destinação óbvia da arbitragem, enquanto instrumento privilegiado de resolução de conflitos econômicos "all’interno della classe dominante" (CHIARLONI, Sergio. Introduzione allo studio del Diritto Processuale Civile. Torino: Giappichelli, 1975, p. 54 e ss.) torna incongruente qualquer tentativa de caracterizá-la como meio de participação "popular" na administração da justiça (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e jurisdição, cit., p. 305), ou de solução adequada aos conflitos internos das classes dominadas (RAMOS FILHO, Wilson. Pluralismo jurisdicional. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas e Sociais, Universidade Federal do Paraná, 1996, p. 128 e ss.; CAPPELLETTI, Mauro. "Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça". Revista de Processo, nº 74, São Paulo, pp. 87-8, abr./jun. 1994).

Já observava DOMINIQUE CHARVET, em outra realidade (a França pós-maio de 68), como resultado de semelhante crise do Judiciário, que:

"Os detentores do poder de Estado levantaram, com efeito, nestes últimos anos a constatação da falência da instituição judiciária: ineficácia técnica, perda de confiança, contestação interna. Os setores mais avançados da classe dominante tenderiam, para alguns, a dispensar provavelmente este modo arcaico de regulação dos conflitos para substituí-lo por outros mais dignos de crédito ou mais dificilmente contestáveis num primeiro momento." (CHARVET, Dominique. "Crise da Justiça, crise da Lei, crise do Estado?" In: POULANTZAS, Nicos (org.). O Estado em crise. Rio de Janeiro : Graal, 1977, p. 250).

A arbitragem é, sem dúvida, um deles. Mas não é por isso que merece ser olvidada pelo processualista. Pelo contrário: aí está mais um motivo para que o estudo da arbitragem se verticalize cada vez mais. E nesse sentido, a obra Arbitragem e Processo é um exemplo eloqüente, que merece ser lido e discutido com a mesma seriedade e profundidade com que foi tão brilhantemente escrito.

LAÉRCIO A. BECKER

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